home Didascálias, LITERATURA, TEATRO Sarah Kane – Vida, Morte e Girassóis

Sarah Kane – Vida, Morte e Girassóis

Passei a licenciatura com as Collected Plays da Sarah Kane debaixo do braço. O livro, já dobrado e cansado de passar de mão em mão era popular nas muitas horas que passávamos no café onde ainda se fumava. Toda a gente queria ler o lírico monólogo de Crave, aquele em que as angústias (ainda) adolescentes do amor não correspondido eram expressas da forma mais certeira. As cenas mais violentas não nos causavam estranheza alguma e pensávamos em formas de levar para palco as mutilações, o sexo e as mortes, os girassóis que brotavam da terra, os ratos que carregam uma cabeça, os abutres que se alimentam de carne humana. A morte trágica e precoce de Kane comovia-nos. Afinal, tínhamos quase a mesma idade que ela tinha quando escreveu as únicas cinco peças que, quando levadas a palco, fizeram o público desmaiar. Phaedra’s Love fez com que lêssemos os clássicos. 4.48 Psychosis era lido aos bocadinhos, a voz de Kane em cada linha, um eco demasiado próximo do osso. Em Blasted a guerra irrompia pela palco adentro, tal como em nossa casa através da televisão. Cleansed expunha-nos ao sadismo e à crueldade humana como nenhuma outra obra de literatura o tinha feito. As palavras parcas da peça, uma economia verbal que lembra Beckett, apelava a estudantes de literatura cansados de ler textos longos e com os quais não nos relacionávamos. Harold Pinter estava certo quando disse que Kane era poeta: a cadência do texto, os seus ritmos internos e o cuidado com que Kane escolhia cada palavra inspiravam muita da má poesia que escrevi nesses anos. Queríamos escrever imagens igualmente violentas e chocantes, palavras igualmente cortantes, fantasiar com mortes aos 27 anos, ter a primeira peça a estrear aos 23.

Há algo em Kane que apela a jovens leitores e foi ela a escolhida para trazer para as aulas de Literatura da mesma licenciatura em que, dez anos antes, tivera o primeiro contacto com os textos. Ao desenhar um programa curricular, vários aspetos pesam na escolha dos textos a ler: que textos apelam a alunos e alunas que cresceram numa era marcada pela transformação da leitura, habituados a imagens violentas presentes em qualquer série ou programa de televisão? Dado o enquadramento temporal e geográfico com o qual temos de trabalhar, que textos e autores/as escolher como mais característicos/as do seu tempo, enquanto se tem em conta a ausência de mulheres e outras identidades sexuais não binárias nos currículos universitários, assim como a necessidade de incluir minorias étnicas e raciais e discursos alternativos à hegemonia hetero-patriarcal ocidental? Reler Kane aos 30 é estranhamente chocante: a distância entre texto e leitor torna-se abismal e o texto não nos parece, depois de outras leituras, tão radical como nos parecia à primeira leitura. Talvez sejamos mais céticos, talvez seja agora possível ver que algumas cenas são estruturalmente instáveis, que as imagens extremas são ecos da tendência um tanto arbitrária para chocar o público que marcou a cena artística dos anos 90 desde o teatro in-yer-face aos Young British Artists da Cool Britannia, que afinal o monólogo de Crave é até um tanto sentimental e que a cena final de Phaedra’s Love, com estripamentos que resultam em churrascos, provoca um riso desconfortável.

Criticada por público e críticos pela violência gratuita das suas peças, e, talvez por ser uma mulher a escrever essas mesmas cenas violentas, mais indicadas para o trabalho do seu contemporâneo Mark Ravenhill, Kane foi lentamente ganhando notoriedade no mundo do teatro, dentro e fora da Inglaterra, assim como o reconhecimento de outras vozes do contexto dramático. As peças de Kane são ensaios experimentais sobre as atrocidades cometidas por humanos a outros humanos, algo a que Kane era particularmente sensível e que a fazia escrever ao mesmo tempo que a desgastava. Muito mais se poderia escrever sobre Kane, desde a dificuldade em ser aceite pelos críticos como uma dramaturga séria, a ausência de outras mulheres no mundo do teatro e se os obstáculos com que se deparou não seriam motivados pelo género, a romantização da sua trágica e curta vida, assim como da sua morte, a pertinência universal e contemporânea de peças sobre guerra, violência e crueldade, a originalidade das suas imagens e o quebrar de barreiras do que pode ou não ser encenado, quer no que toca aos limites dos corpos de atores, quer na criação em palco de cenários e cenas inimagináveis.

Com um legado curto e inesquecível, Kane conseguiu em poucos anos, ao lado de outros tantos nomes de dramaturgos jovens que trouxeram para o teatro britânico um novo tipo de experimentalismo, inovador e chocante, criar algumas das imagens e diálogos mais marcantes da década de 90 e que, sempre que regressam ao palco, trazem a mesma força visceral que lhes infundiu.

Da obra de Sarah Kane ainda brotam girassóis.

Mais Teatro AQUI

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *