home Didascálias, TEATRO Sarna – Mosteiro de São Bento da Vitória, 2/11/2019

Sarna – Mosteiro de São Bento da Vitória, 2/11/2019

Um actor, dois homens e os seus monólogos consecutivos, existências paralelas que se cruzam de forma trágica e cómica. É esta premissa de Sarna (Howie the Rookie, estreada em 1999 no Bush Theatre de Londres), peça de Mark O´Rowe que lhe granjeou a fama, em que linguagem e a gestão dos ritmos e movimentos são o segredo para o sucesso e magnetismo de personagens que, de outra forma, seriam apenas repelentes e risíveis notas de rodapé. Toda a peça é um exercício de expressividade e entrega total por parte do protagonista (Pedro Frias) e de empatia do público pelos desgraçados Howie Lee e Rookie Lee. O expediente de intercalar comédia quase burlesca e caricatural (enriquecida pela linguagem bem colorida e sem tabus) com o drama e a tragédia sangrenta (e aqui quase sacrificial, da esperança na mudança e evolução), habitual em O´Rowe, é aqui refinado à excelência, com a assistência apanhada desprevenida e cortando rasante qualquer gargalhada pela lâmina afiada da sugestão detalhada e manipulação das emoções.
Howie e Rookie Lee conhecem-se e interagem de pior maneira: a violência. O primeiro persegue o segundo para se vingar de ter infectado o seu grupo com sarna. Entretanto ficamos a conhecer este gangue, verdadeira família de Howie, e com ele a cidade esconsa onde circula e as aventuras delirantes com o sexo oposto. O homem que nos encara sem filtros, como se procurasse aprovação, distingue-se da sua persona quotidiana: selvagem, violento e brutal na sua consciência, mas de facto desajeitado e não tão másculo como gostaria no trato social, mesmo (e quase sempre) em prejuízo próprio. Pelo meio, uma miríade de amigos e conhecidos – a Susana Contentor, a Avalanche, o Peaches, o Ollie, a dupla Flann Dingle e Ginger Boy e a sua “hi-ace verde” (“O Flann Dingle é gordo e suado, o Ginger Boy é baixo, cabelo cor de cereja, tão vermelho que o trânsito até pára.”) – a que se acrescentam os pontos de encontro pouco recomendáveis – o videoclube Vendetta, o “desvio de Mercy”, as “lojas novas” ou o Flaherty (“Uma enxovia desgraçada. O género de sítio da Av. Um sítio onde se pode foder nas latrinas à vontade.”), compondo a mística decadente das noitadas e dos subúrbios que todos envolvem e condicionam. Entretanto, um presságio…

“Não sei o que é que se passa comigo hoje.
Parece que não sou eu.
Parece que estou a passar por uma espécie de transformação.
Quero ir para casa.”

…e o desenlace estarrecedor do primeiro acto/monólogo.
Rookie Lee é o contraponto de Howie. Seguro e sedutor, está habituado a manipular pessoas e situações ao encontro dos seus interesses, principalmente as mulheres, que se vão sucedendo ao ritmo dos seus caprichos. Frias muda de t-shirt e casaco, gel no cabelo e pente no bolso traseiro das calças de ganga e está pronto para o derradeiro round do combate com as palavras e as emoções. Rookie sabe que naquele sítio, do nada, tudo lhe pode literalmente cair em cima.

“Olho negro, lábio rachado, uns arranhões, não está assim tão mal, aquele Peaches é um bocado fracalhote.
Ele e o Howie Lee, o meu homónimo, a dar-me pancada a propósito sabe-se lá de quê. O tipo de coisa que pode acontecer, que acontece.
A certa hora, é tudo amigo de um gajo, a seguir andam atrás de um gajo por alguma razão que ninguém sabe qual é. Pode acontecer, acontece, calha assim.”

O Dave McGee Rico e o Ladyboy são os grandes rufias da zona e Rookie, por inépcia, contrai uma dívida com Ladyboy. Ao invés de Howie, é um solitário, o que não ajuda nada nestas ocasiões.

“Não tenho amigos.
Amigos, nada, só gajas com quem fodi.”

Do nada, a ajuda pela pessoa mais inesperada: Howie. E um pressentimento:

“Flasha-me qualquer coisa na cabeça.
Qualquer coisa a ver com o Flann Dingle e o Ginger Boy.
Flasha mas não engata.
Hei-de me lembrar, mais tarde ou mais cedo.”

Nunca mais esqueceria. Nem nós.
A cena final de cada acto/monólogo altera definitivamente as suas vidas e fixa a atenção do público pelo impacto emocional e visual que a descrição de Howie sugere. No desenlace final, com todo o elenco presente na festa de Dave McGee, somos brindados com a verdadeira battle royal, à boa maneira dos filmes de artes marciais e dos jogos de consola, com os dois “homónimos” do grande Bruce Lee a partilharem a acção (com Pedro Frias a segurar todas as pontas soltas como um malabarista experiente) num trecho duro e que não queremos revelar. Como é hábito, O´Rowe acena-nos no epílogo com uma fímbria de redenção, depois da purga pela violência extrema, e o sabor metálico da aleatoriedade da vida fica na boca, com o futuro possível em aberto.
Pedro Frias é a alma deste festim de interpretação teatral, num verdadeiro combate contra o tempo e a resistência a um texto inclemente e de extrema exigência. Favorecido pelo ambiente acolhedor da antiga sala de tribunal do MSBV, o actor é um verdadeiro saltimbanco. Dança, grita, corre desenfreadamente, ocupa toda a cena e interage com a assistência, com as vozes de todo o elenco e a força da palavra. A imaginação colectiva começa a sentir a sarna impregnar-se, inquieta com os contornos e consequências dos feitos infames destes dois proscritos da sociedade, vidas duras e irremediáveis de homens forçados a recriarem-se a cada dia, meras estatísticas nesta sociedade a tantos trechos autofágica. Uma tarefa quase impossível que Pedro Frias leva a bom porto, para deleite do público que esgotou as récitas de 3 e 4 de Dezembro no Mosteiro de São Bento da Vitória.

Sarna passa pelo GrETUA a 6 e 7 de Dezembro

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