home Antologia, LITERATURA Sinais de Fumo – Alex Couto (Suma das Letras, 2024)

Sinais de Fumo – Alex Couto (Suma das Letras, 2024)

Bem sei que costumo fazer textos maiores; os haters dirão até grandes demais. Tal como indica o título, são apenas dois bafos sobre o livro que terminei dias atrás, nada mais que isso, já que estamos na silly season. Até porque, para crítica literária ponderada desta obra, o que a Isabel Lobo escreveu há tempos chega. Em Sinais de Fumo, a trama que sai do Viso para o mundo faz-nos viajar por zonas com ar rarefeito, em que a simples existência é imediatamente taxada de imposto. Parece que navegamos sem terra à vista, com bar aberto e na coluna Alcool Club: “Peel me a graaaape, crush me so iiiice, Skin me a peach, Save the fuuuzz for my pillowwwww…”

Por um lado, a troika. Os despedimentos, os cintos apertados (tão apertados que davam fome a quem não comia para caber nas calças), a miséria, a febre por furar a rede que nos apanhou a (quase) todos e o pouquíssimo original empreendedorismo. Ah o fresco e “amentolado” empreendedorismo. Aquele que nos diz que, com o devido esforço e dedicação, qualquer degrau da escadaria social parece fácil. Quem o diz, por norma, vai subindo de elevador. A troika foi há tempo suficiente para ser nostálgica (no mau sentido), mas recente o suficiente para a recordarmos com clareza. É um tiro de partida raro na literatura portuguesa, para o qual Alex Couto teve a bondade de nos trazer. São variados os momentos em que Alex nos chama à realidade áspera destes tempos: as manifestações, o desemprego, a noção de que o que rodeia as personagens principais está mais cinzento, negro até.

É importante termos em conta onde somos colocados durante a trama. O Bairro do Viso não é assim chamado pelo facto de quem lá viver ser o espetro da sociedade sempre mais visado pelos constantes olhares do azar, da dor e da perda. Mas poderia ser. Inconscientemente ou não, Alex Couto vai-nos sussurrando que a crise geral tem um impacto óbvio – mas curioso – no Viso. No Viso, o inferno que as classes média e baixa sentiam, o peso dos halteres da austeridade que impediam qualquer repetição, era o dia-a-dia. E como um barco naufragado não afunda uma segunda vez, os rapazes da Green perceberam que era impossível descer do abismo que já habitavam por natureza. Constatação essa confirmada quando, perto do final, anos depois, vindos de uma longa viagem no beemer, os 3 mosqueteiros da droga encontram um mundo parecido com aquele que havia sido trucidado por Passos e companhia. As obras do bairro já contavam com os grafitis obrigatórios, as placas de haxixe continuavam a ser vendidas. Os pequenos e médios traficantes continuavam a viver de mocas alheias. A crise trouxe dor a Portugal, mas ali as doses de morfina eram há muito administradas. É só mais um baixo, um pouco abaixo dos outros. A queda não é tão grande.

Mas se o pano de fundo é a crise económica, os contornos principais do livro levam tons verde acastanhados. Falamos de erva. Nas criações artísticas, não raramente, a droga aparece como um obstáculo, uma negritude, na branca travessia dos protagonistas. Nas novelas, as drogas consumidas incendeiam as casas das velhas que por este Portugal se espalham: “filho meu nunca me fará uma desta ou não será meu filho”. A droga que torna violentos os maridos das séries e devedores de gente perigosa – imagino o Isaac Alfaiate, a chegar atarantado a casa, de manga cava e o nariz meio esbranquiçado, sovado pelos traficantes que lhe arranjam vitamina B em pó para ele colocar à flor das narinas, ao entrar em cena.

Em filmes como Requiem for a Dream, o consumo de droga não é um mero obstáculo, mas o fim de cada uma das personagens. Não há forma de escapar ao elan que ela nos dá. Somos um pequeno palito a rodopiar entre os dedos desta tão eficaz maleita, sem poder nem possibilidade de sermos mais que seus meros fantoches. Assim que “dão de beiças” com alguma destas substâncias aditivas, as personagens fraquejam e batalham. E tem o seu sentido. É real. Todos conhecemos algum “diz que disse” de um amigo, conhecido, conterrâneo, que perdeu no braço de ferro com a droga. O puto lingrinhas do secundário que se tornou num carocho, que agora tem no Linkedin “passador do bairro – giro alegrias momentâneas que se aconchegam em mortalhas king size”. Nós sabemos que é real.

Em Sinais de Fumo, alavancado pelo espírito modernaço que a troika nos incutiu, Alex Couto transforma traficantes em empresários e uma rede de droga numa startup. Elucidando-nos da hipocrisia da sociedade que os rodeia, apenas fica claro que, ao usarem o mesmo tabuleiro de jogo de alguns políticos e pessoas de influência, também os rapazes do bairro podem ser Don Corleones. O processo é mais feio, envolve perseguições policiais, facas e navalhas, encomendas de droga em sites marados na deep web. Em nenhum momento este livro é uma apologia à mensagem “a erva é fixe!”. Charlie para de fumar, Alex (a personagem) tem surtos depressivos sobre o seu vício e sobre o vício que vendem no Viso. Ninguém acaba de ler este livro com a ideia de que fumar ganzas é uma banalidade mundana. Reconhecemos, de facto, que neste contexto é banal. É, mais que um escape, economia local. O Zé G. vende umas doses, na esquina, as gémeas orientam outras tantas. Da mesma forma que, no Algarve, muitos tiram o ganha-pão do turismo, no Viso o pão é outro mas a lógica é a mesma. O que se tira desta aventura é como, neste contexto, a venda e o tráfico de droga – mesmo que gentrificados e embelezados pelo contexto do empreendedorismo bacoco a que até eu tive direito nas aulas de cidadania do 3º ciclo e secundário – podem ser das pouquíssimas saídas para alguém que queira, mais que sair do bairro, ter o conforto que só os ricos têm. Não é a única saída – Alex que o diga – mas, se para alguns, ir para a faculdade e seguir para uma empresa qualquer nos poderá desafogar de um futuro em alto mar – algo cada vez menos verídico – ali não é o caso. O autor não romantiza o consumo de haxixe ou de erva, apenas demonstra o quão normalizado está fumar erva como se fumam cigarros. A única certeza com que se sai do livro é que os canhões do Charlie dão mocas com que os vendedores de orégãos do Terreiro do Paço nunca sonharão.

Alex Couto arriscou e petiscou. Ser autêntico na escrita e de forma tão singular, numa era em que autores constroem livros com fórmulas favoráveis ao seu sucesso comercial – olá Colleen Hoover, é mesmo de ti e da tua malta que estou a falar – é no mínimo de se dar valor. Quando a execução é boa, como foi o caso, esta aventura torna-se, não só necessária, como feliz.

O naufrágio de Alex Couto não estava garantido, mas os salpicos de Sinais de Fumo, farão certamente parte de uma onda maior que há de chegar.

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