home Didascálias, TEATRO Tiago Lima, ainda estás aqui – ENTREVISTA

Tiago Lima, ainda estás aqui – ENTREVISTA

Ator, escritor e encenador lisboeta, que rumou a Leiria ainda muito cedo. Trabalhou em televisão, cinema, teatro e e nas palavras que se entretém e quer entreter. A música vai direto ao coração e, talvez por acreditar nisso, criou o seu mais recente espetáculo com uma banda, três músicos e um vocalista inquieto. O espetáculo este, Ainda Estou Aqui, vencedor da terceira edição da Bolsa Amélia Rey Colaço, com o seu texto e encenação.
Dave, Queda-Livre foi o primeiro texto que escreveu ao longo de três anos e que estreou em 2019. Tiago Lima.

É claro que vou querer perceber e conhecer a tua história de vida, mas antes quero saber o que é que te propôs, o que é que te propões fazer? Na revista Intro.

Tiago Lima

Obrigado por essa introdução. Foi um convite feito pelo Paulo, o diretor da revista, que a primeira mensagem que me mandou queria que eu escrevesse semanalmente para a revista qualquer coisa como uma crónica, um texto crítico sobre a literatura, cinema, teatro ou qualquer coisa assim dentro desse género. Eu achei que não iria ter muita paciência para todas as semanas estar a escrever um texto crítico ou uma crónica.
Então propus-lhe porque não todos os meses escrever uma cena de uma peça, e ao final de não sei quantos meses, porque não sei quantas cenas terá e no final conseguirmos ter uma peça, uma peça completa. Portanto, a ideia inicial foi essa do Paulo e depois sugeri porque não todos os meses eu escrever uma cena e depois, no final, termos uma peça de teatro escrita.

Portanto, recebeste o convite e levaste a água ao teu moinho.
Sim, porque sentia me mais confortável, apesar de também ter o medo de todos os meses ter de escrever uma cena. Porque escrever para teatro às vezes demoro três meses para escrever uma cena e agora tenho esse desafio de num mês conseguir escrever sempre uma cena que faça raccord ou não com a cena anterior. Vamos ver como é que corre.

Ía perguntar-te qual seria o desafio, portanto, é essa obrigatoriedade. A periodicidade na construção do texto?
Sim. E também obrigar me a escrever porque eu gosto muito, não gosto na verdade mas acontece, de procrastinar. E o facto também de me ter desafiado a fazer isto para a Intro serve também para para me exercitar a não procrastinar tanto e criar disciplina. Porque o meu método de escrita é um bocado caótico, apesar de depois das coisas se juntarem todas e fazerem sentido.

Quando falamos em gente criativa e gente ligada às artes normalmente pensamos que a criatividade vem do ar, mas muitas vezes vem da tal disciplina.
Vem da disciplina, também vem do ar, mas vem pelo menos no meu caso, vem de bastante trabalho, porque quando eu falo de caos, esse caos é ler livros, ver filmes, ler entrevistas, biografias, e tudo isso cria um caos que depois faz com toda essa informação ganhe forma e ajuda-me a preencher um universo para construir as peças que escrevo. Por exemplo, na primeira peça, a ideia inicial era a relação de um pai de um filho e depois cresceu devido a coisas que li para uma coisa maior do que aquilo que eu tinha pensado inicialmente. Ter mergulhado na obra do David Foster Wallace, que é uma obra grande, densa e hiperbólica, percebi que seria interessante povoar o universo do texto com alguma densidade não só textual mas também na construção de personagens.

Que idade tinhas quando soubeste que querias mesmo estudar teatro?
Eu sempre fui um aluno muito medíocre e a certa altura da minha vida eu estava no oitavo ou no nono ano e não fazia ideia do que é que iria fazer da minha vida. E a minha mãe olhava para mim e também não sabia o que é que é que ía ser de mim. Nessa altura já tinha começado a fazer teatro na escola e ela decidiu eu vir para Lisboa, para casa do meu pai e eu resolvi vir estudar teatro. Não sei porquê. Mas sei que tive muita sorte em encontrar o teatro, a escrita, o cinema. Se não tivesse vindo para Lisboa talvez ainda continuasse por Leiria a fazer mil e uma coisas sem me dedicar a nenhuma em concreto. E no fundo, descobri que o que eu queria era contar histórias e inscrevi-me na escola em Cascais.

A ideia de ser ator surgiu na prática?
Eu fazia teatro no colégio em Leiria e sentia me bem a fazer. E quando vim para Lisboa, como tinha mais oportunidades de poder estudar teatro, decidi faze-lo mesmo contra toda a minha família. Depois quando entrei na escola tive um choque em relação à ideia que tinha do teatro. Principalmente por não estar a conseguir divertir-me. Não me estava a dar prazer.
Isto não é de todo uma crítica à escola. A escola tinha o seu método, mas deixei de me divertir. E foi aí que também comecei a mergulhar mais na dramaturgia e na literatura, porque precisava de qualquer coisa que me preenchesse e ser ator não estava a chegar, precisava de mais qualquer coisa. E fui na altura da Escola Profissional de Teatro de Cascais que me surgiu a vontade: porque não ser eu a escrever as palavras que posso dizer em palco?

E no fundo, se calhar também a tua alteração, teres vindo de Leiria. Não só a diferença do espaço físico. Era uma coisa diferente, mas se calhar também o facto de ires morar pela primeira vez com o teu pai, não é? São duas situações novas e que se calhar criaram em ti uma vontade de uma vida nova.
O principal e o que me custou mais foi o choque de “o que é agora viver com o meu pai?”, porque eu nunca tinha vivido com ele. Então eu também o conheci e fui conhecendo. E à pouco falei que o início do Dave, era a relação do pai e do filho era precisamente essa nossa relação, mas felizmente fui crescendo e fui percebendo que não quero que o meu pai vá ao teatro e veja uma peça escrita por mim e sobre nós. Não queria expôr no teatro aquilo que podia sentar-me numa mesa com ele e falar. E daí também o universo que depois, à volta da peça, mas claro se espremermos tudo e aquilo está lá muita coisa nossa. É normal.
Tudo o que escrevemos é sempre autobiográfico, um dia alguém disse que até As Viagens de Gulliver são autobiográficas. Portanto, tudo o que escrevemos é autobiográfico, tem sempre uma qualquer coisa nossa.
Apesar de nós povoarmos o universo com outras coisas, outros temas que tentem ludibriar aquilo que sentimos e acreditamos. Acaba tudo por ser metáforas sobre aquilo que nós queremos realmente dizer.

Mesmo que seja algo intuitivo, é algo inconsciente. Às vezes vamos sempre dar a essa tentativa de perceber o nosso mundo.
Sim. E porque, por exemplo, lemos um livro, quando li A Piada Infinita, havia lá muitas coisas daquela família que eu identificava-me. Portanto, e se fazia logo ali um link com a relação com o meu pai, com a relação com a minha família, com essa essa autoridade e esse peso que os pais põem constantemente nos filhos.
Essa ideia que tens de ser o melhor. Isso às vezes. Acho que a mim, se calhar em certos pontos, pode até ter prejudicado, ou não porque me fez chegar onde estou agora. E é bom o sitio onde estou agora. Acho que acho que sou um privilegiado.

E és um privilegiado. E o teu percurso pode ser altamente inspirador para quem te está a conhecer agora ou quem já te conhece. Candidatares-te a encenador muito cedo, não é? Quer dizer, normalmente isto vem numa etapa de vida, talvez mais tarde. Habitualmente vemos isso e cercaste-te logo de pessoas já bastante batidas no mundo do teatro e do cinema.
Queres contar um bocadinho dessa tua aproximação a gente já consagrada? A gente que já tinha bastante experiência.
Quando eu acabei o curso em Cascais, fui convidado pelo meu professor de dramaturgia, Miguel Graça, que também escreve teatro, para entrar num espectáculo que ele iria escrever para 5 alunos daquele ano.
Estreámos no TEC, em Cascais, depois fomos ao Porto. Também tivemos no Teatro do Bairro, em Lisboa, e a partir desse momento eu percebi que queria ao máximo trabalhar com pessoas que eu admiro e que goste do trabalho delas.
Não me faz sentido ir fazer uma peça apenas porque é um Tchekhov ou um Albee sem ser com pessoas que me interessa trabalhar. O que me interessa são as pessoas. Sempre quis rodear me de pessoas que admirasse, porque isso dá me uma vantagem que é:
eu gosto do trabalho destas pessoas eu vou aproveitar e vou beber muito daquilo que elas são, perceber a forma como elas trabalham e isso vai me ajudar a crescer. Portanto, sempre tive essa mentalidade. E no caso do meu primeiro espetáculo, que primeiro fizemos uma leitura encenada, eu fui diretamente falar com os atores que gostava e que já tinha imaginado enquanto estava a escrever o texto quem é que iria interpretar aquelas personagens, que é uma coisa boa, estares a escrever e já saberes para quem estás a escrever.
E tive a felicidade de praticamente toda a gente que eu convidei, apresentei o texto e a maioria das pessoas gostou e aceitou o desafio. Para mim foi também o reconhecimento do meu trabalho e é um voto de confiança das pessoas, pois foi a minha primeira encenação.
Os atores mais velhos. Neste caso, eu fiz primeiro uma leitura encenada e o Miguel Loureiro e a Beatriz Batarda, ajudaram me em certos pontos. Lembro-me a primeira vez que a Beatriz leu o texto a primeira coisa que me disse foi que achava o inicio muito infantil. E isso é tão generoso. Faz-te pensar. Vais para casa pensar naquilo e no ensaio seguinte tentas contraria-la: “ E assim ainda está infantil?”
Depois, no espetáculo, em 2019, tanto o Pedro Lacerda como a Cristina Carvalhal também houve essa atenção da parte deles.
Ambos me foram dando pistas: “já pensaste que se calhar está muito fragmentado? Já pensaste em ligar mais as cenas”. Foi uma ajuda espetacular. As duas encenações que fiz, estive sempre super bem rodeado, mas também lutei por isso.

Para além do feedback ao texto que aceitaram, portanto, é sinal que gostaram. Depois, o teu trabalho de encenação esse tal feedback como é que foi dos atores estiveram contigo?
Acho que foi positivo. Não sei se todos quererão voltar a trabalhar comigo, espero que sim. Mas a relação foi sempre positiva. O Pedro Lacerda, por exemplo, apresentei-lhe uma ideia para um espectáculo ainda sem o texto escrito e ele alinhou.
Mas ou seja, acho que vou desviar um pouco da pergunta. Mas há muita ideia de que as companhias estão a acabar e eu acho que com estes dois espetáculos comecei a criar já um conjunto de pessoas que gostam de trabalhar juntas, e gostava de continuar e trabalhar em companhia, não uma coisa hiper-fechada mas termos um núcleo que vai sendo visitado por pessoas com quem gostaríamos de trabalhar. Os actores que fizeram o Ainda Estou Aqui, excepto a Surma, todos tinham entrado no Dave e todos alinharam na ideia de sermos uma banda e termos de aprender a tocar instrumentos.
Eles já conhecem a minha forma de trabalhar e eu também já conheço a forma como eles encaram o trabalho e isso é meio caminho andado.

Eu bem disse que o teu percurso era altamente inspirador, não é? Exatamente por isso. Quer dizer, com a tua idade já estás nesse patamar. Já criaste quase essa marca, porque já te rodeias das pessoas que gostam de mim.
Mas também lá esta, também tive a oportunidade de trabalhar com pessoas que me influenciaram bastante o Gonçalo Waddington, fiz dois espetáculos com ele, um como assistente de encenação e outra como ator. Claro que é bom ter no currículo, mas o mais importante foi o que eu aprendi com ele, com o Bruno Bravo, com o Miguel Loureiro.
Quando trabalhei com eles, tinha 21 ou 22 anos a minha ideia não era tanto entrar no espetáculo mas sim estar ao pé deles e perceber, no caso do Waddington, de perceber como é que era o processo de escrita dele, todas as coisas que ele pesquisava, como é que ele lidava com o com o texto, o trabalho que fazia com os atores. Para mim isso foi uma escola.E enquanto actor?
Sou muito cerebral. Eu posso estar a fazer o Hamlet e estar a fazer a cena do Fantasma do pai e se olho para o público e vejo a minha mãe, eu sei que é a minha mãe que está lá. Eu nunca perca essa consciência. Há actores, dizem eles, conseguem alcançar esse estado de graça ou de abstração total. É possível eu acredito. Eu ainda não cheguei lá. Ou se cheguei foram poucos segundos, não sei.

Tu consegues essa abstração na encenação.
Na encenação a única coisa que eu quero é que eles gostem e que se divirtam com o que estão a fazer, porque foi tudo aquilo que eu não senti enquanto estive a estudar para ser actor, ficava muito nervoso, sangrava do nariz antes de entrar em cena.
Depois claro que há todo o trabalho que fazemos juntos que parte sempre da palavra e nos textos que tenho escrito até agora a encenação já está no texto. Eles já sabem e compreendem a viagem que eu quero e que faz sentido as palavras fazerem. O actor abre a boca, a palavra sai e tem dois alvos, a contracena (caso haja) e o público e nessa viagem uma imagem tem de acontecer na cabeça do espectador.

Com os actores, quando os orientas e crias essa atmosfera o que é que te surpreende mais? Quando eles fazem a versão 2.0 do que estavas à espera.
Também. Eu acho que sou um bocadinho ditador no sentido em que quando escrevo parte da encenação já está no texto. A primeira leitura é sempre muito emocionante.
Esse é um momento de muita angústia, mas é muito emocionante porque é como se abrissem o teu cofre onde escondes as cartas de amor que te escreveram há 20 anos e é a tua privacidade que está ali e imagina o que é que é o teu filho ou alguém, um dia abrir essa caixinha e ler uma carta de amor em voz alta para ti? É essa sensação de “ok, eles agora estão a ler isto.
Isto isto já não é só meu. Já passou a ser nosso. E depois chega uma altura que aquilo já não é meu é mesmo dos actores. E quando eu sinto que aquilo é deles e eles estão a ir pelo caminho que eu tinha sonhado isso é maravilhoso. Quando isso acontece é deixa-los ir e começar a pensar no próximo texto.

A materialização das coisas em cena. E o que é que tu motiva a escrever?
Há muita coisa que me motiva. A minha família, a família com quem escolhi partilhar os meus dias e a constante tentativa de tentar escrever melhor.

Qual foi o primeiro autor que te influenciou?
Foi António Lobo Antunes. As primeiras coisas que eu escrevia antes de escrever o primeiro espectáculo eram claramente tentativas de escrever, como ele.

Como é que ele escreve?
Como ele diz: “Há uma diferença entre escrever bem e escrever mal. Então começa a angústia. Mais tarde percebes que há um diferença entre escrever bem e obra-prima e aí a aflição é completa.” Ele escreve obras-primas.

É, nesse tema, na angústia que vais buscar matéria para escrever?
É na angústia. No medo, na morte, no envelhecimento. O que é que que estamos aqui fazer? Não é. Eu preciso muito desses momentos. Valerá a pena escrever? Não sei. Mas apetece-me continuar. São nesses momentos que me surge também inspiração para a escrita.

Nessa angústia há espaço para o humor?
Claro. Sim, claro. Sempre.

É ele que nos salva?
Sim. Porque nesse mergulho que fazes há procura de matéria, encontras muita coisa e muitas coisas que encontramos sobre nós fazem-nos rir. Eu quando penso como é que a minha família olha para mim começo a rir porque eu tenho 28 anos e passo grande parte do tempo a pensar no que é que vou escrever no próximo espectáculo. Isso faz-me rir.

Uma forma de entretenimento, de auto entretenimento, então.
Também é uma tentativa vã ou não de tentar entreter os outros, mas também me riu sobre isso, porque eu não sei. Daqui a dez anos alguém eu sei lá se alguém se vai lembrar de mim. Eu esforço-me, mas não sei.

Em que idade é que estás? Em que idade é que tu queres manter para continuares a encontrar a palavra, que é isso que eu que te move aqui neste trabalho.
Não sei. Eu não sinto que tenho a idade que tenho. Há coisas para as quais já não tenho paciência e que vejo as pessoas da minha idade fazerem. Devo ter nascido no século errado.

Sentes-te satisfeito com a tua escrita?
Não, ainda não. E espero nunca estar satisfeito. Quando estiver é porque cristalizei.

E também estás com saudades de atuar, de estar lá em palco.
Sim. E estou a tentar matar essa saudade. Estou a escrever um texto em que estou escrever uma personagem para mim.

Queres falar sobre isso?
Sim, chama se Lembra da Mulher de Lot. O ponto de partida é o episódio bíblico em que ordenam à família de Lot para fugirem de Sodoma e pedem uma única coisa: “ foge, mas por favor, não olhes para trás.” E ela olha para trás e transforma-se numa estátua de sal.
A grande questão é porque é que ela olhou para trás, para a destruição, em vez de olhar para a frente para o futuro? Então, a partir deste ponto de partida, comecei a pensar sobre isso, sobre essa necessidade que temos de olhar para trás para conseguirmos seguir em frente.
Decidi escrever o espetáculo sobre um autor, que sou eu, que tem uma idade indefinida, que passou a vida a escrever para uma atriz. E a atriz começa a questionar tudo aquilo escrito para ela, que no fundo foi a vida dela, a vida que viveu mas que nunca a quis viver.
Nesse texto entrarei como ator, que irá estrear no final de 2023, início de 2024.

Tiago Lima ainda estás aqui. Obrigada.
Muito obrigado.

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One thought on “Tiago Lima, ainda estás aqui – ENTREVISTA

  1. Gostei de ler o Tiago. Acompanhei essas suas dúvidas quando foi viver com o pai e estudar para Cascais. Era a sua diretora de turma e ainda bem que percebi o desejo dele de se encontrar noutro sítio e o incentivei a enfrentar os obstáculos. Estou orgulhosa pelo teu sucesso, Tiago. Beijinhos da professora Malva.

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