Este texto deveria fazer um ponto prévio. Não para seguir o modelo de Apresentação do Rosto, com «Os Prólogos», mas para tentar que fosse mais claro o que se tentará a seguir.
Não faltará quem questione, lamente, ou pior, que se volte a publicar um livro que não foi reeditado em vida do seu autor. Levantar esse fantasma fará todo o sentido que quiserem, ou não fará nenhum. Mas a opção deste lado foi a de ensaiar uma leitura do livro por si só. Será, com certeza, uma escolha que se contrarie facilmente, se condene. Nem se irá, neste texto, levar em linha de conta o que o autor veio a fazer com este livro que agora se reedita, e o que dele pôde reviver, ou renascer, em outras obras. Esse trabalho já foi, exemplarmente, feito por alguém. Esse alguém chama-se Manuel de Freitas, e o resultado do labor e da precisão do poeta e crítico teve como título Uma Espécie de Crime – Apresentação do Rosto de Herberto Helder (etc, 2001). Não nos escapa, como se poderá adivinhar, a ironia de este livro de Manuel de Freitas se ter tornado, por seu turno, também ele, um objecto de culto, e um espécime bibliográfico especialmente raro.
Mas não vale a pena estarmos com paninhos quentes: a reedição deste livro é um marco editorial. Um livro que era pertença exclusiva de um grupo altamente selecto de poucos tornar-se-á um objecto que circule, que passe de possível leitor em leitor. Mito urbano, ou não, é sabido que os escassos exemplares conhecidos vêm circulando, os mesmos, de proprietário em proprietário, ao longo de anos. E não é menos óbvio que voltar a editar este livro, este livro em particular, posiciona o leitor perante um lance de escadas no qual cada degrau é uma contradição. Perdeu-se em «mística» o que se ganhou no horizonte de aventura, possibilidade de cada um descobrir o seu fogo, deturpando um bom bocado o que Herberto Helder dizia algures.
Se quiséssemos estabelecer uma qualquer ligação entre Apresentação do Rosto com a anterior literatura portuguesa, estaríamos a contrariar o preceito de Michaux – autor que Herberto traduziu – segundo o qual são de pôr de parte todas as comparações entre autores ou obras suas. Mas se, mesmo assim, fôssemos capazes de persistir, contra todos os indícios contrários, esse objecto seria Húmus. E não apenas porque Herberto Helder partiu desse campo de sangue que é o livro de Raul Brandão para fazer o seu próprio Húmus, mas porque Apresentação do Rosto possui essa rebeldia, essa incapacidade de obedecer a planos e a géneros. Poema em prosa? Ensaio? Autobiografia. Tudo e nada do que cingisse este livro a um limite, ou a uma necessidade de cumprir. O livro máximo de Raul Brandão e o secreto livro de Herberto Helder irmanam-se no estilhaçar de qualquer rede organizativa, de qualquer expectativa. Se o lirismo e a narratividade dão lugar ao testemunho, e se qualquer um deles é substituído por deixas sem suporte nem didascálias – puro, ou impuríssimo, dizer, não muito distante das «falas» que pontuam secções totalmente inesperadas de O Inferno de August Strindberg. Como o Húmus de Brandão, o livro de Herberto Helder age como a dinamite em seu redor, e toda a linha a direito se vê inviabilizado. Tudo são vísceras e pleno pulsar. O pulsar do que há de mais fundo aninal.
Rito iniciático, ritual de passagem, será Apresentação do Rosto? Sim, porque as palavras concebem o seu lugar – com o horror do palavra após palavra, parafraseando agora Raul Brandão – como um sortilégio perturbante do conhecimento e da reflexão sobre a entrada na vida da escrita – «Uma noite começo a escrever.» (p.20) De resto, na sua «secção» final – não se tratará bem disso, mas de «movimentos», de «andamentos», de uma só propulsão da linguagem, do ritmo e da música –, um mestre comparece em Apresentação do Rosto. Ao longo deste livro, há um erguer e um derrubar de edificações, há um «senso» que é «contra-senso» como o autor dirá. O pulsar vital, espécie de abraço solar que tudo inclui, ao gerar uma tonalidade afirmativa, combate com a queda e o impulso destrutivo, o da morte e o da obscuridade – «E o meu amor pelas pessoas também crescia, varado por singular violência e fraqueza, um pânico, uma melancolia enormes.» (p.157) Poema do crescimento e da maturação, da memória e do seu reconstruir, Apresentação aproxima-se de uma possibilidade de efeitos autobiográficos, para logo os fazer contrabalançar com o pensamento obsessivo da escrita – escrevo para explicar: que se trata de uma tumultuosa, desavinda multidão de metáforas encerradas numa única metáfora.» (p.139)
Descrição revoltosa de uma vida em flashes de captura intensa e majestosa, aproximação convulsa à raiz de todos os males e à vocação terrível da escrita. O sujeito dissemina-se, espalha-se pela vastidão das coisas, o impossível cálculo do mundo. Esse magma captura-se neste livro compósito e pulsional. Este livro não é a tentativa de um iniciante, mas de um iniciado. Mas para que degrau, que nível de ascensão, se este xamã já pratica a sua arte divinatória, se tudo nele já está em controlo pleno com as forças e os magnetismos, as energias e os fluxos. A escrita de Herberto Helder caminhou, depois, em tantas direcções, que tudo são caminhos, e tudo são desconhecidos. Mas este livro possui – e não em génese, mas em maturação – já o poderio imagético que conhecemos na obra ulterior de Herberto, a capacidade construtiva de mundos que vivem no coração oculto de tudo.
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