home Didascálias, TEATRO Castro – Teatro Nacional São João, 3/7/2020

Castro – Teatro Nacional São João, 3/7/2020

Castro de António Ferreira é apontado como um dos textos seminais da cultura portuguesa. Não obstante a distância temporal que dele nos separa, a importância que o mito de Pedro e Inês ainda assume nas nossas vivências culturais (e porque não?, quando tantas são as obras que dele derivam) talvez esteja na origem da decisão de utilizar esta peça para relançar a programação pós-confinamento do Teatro Nacional de São João, com três récitas gratuitas destinadas aos profissionais de saúde.
Há algo de profundamente impactante nesta história, mesmo para quem não nutra especial apreço por tragédias de amor. Por um lado, o dilema da personagem do Rei D. Afonso IV, habituados que estamos a vê-lo pintado como vilão. Aqui mais humano na sua indecisão, entre a emoção e o imperativo patriótico, clamado pela justiça popular, ganha multidimensionalidade, potenciada por uma interpretação bem conseguida de Pedro Frias. Em Castro, D. Afonso IV degenera num torpe soberano que, à medida que busca a força que lhe exigem os seus conselheiros, acaba capitulando perante as suas próprias fraquezas, pois “ninguém menos é rei que quem tem reino”. Por outro lado, a Castro (segura por uma sólida interpretação de Joana Carvalho, finalmente com o protagonismo que o seu talento já pedia há muito), uma Inês bem distinta das tantas que povoam o nosso imaginário, tornada símbolo da emancipação feminina (onde a opção linguística assume particular relevância). Claramente uma assumpção que à data não seria permitida, é impossível não o inferir quando assistimos à sua vitória sobre o Rei D. Afonso IV: “Senhor, aqui me tens, não te preocupes, eu não fujo”, vencido pela força da sua argumentação, da auto-proclamada certeza da sua inocência.
São leituras muito actuais, pertinentes como nunca, e em que Nuno Cardoso conseguiu colocar a devida preponderância numa peça que, nalguns momentos, parece perder a articulação entre o fulgor da originalidade do texto e as opções estéticas da encenação. Há algo de extremamente vanguardista nesta opção de representar uma tragédia matricial da língua portuguesa fora do seu espaço habitual. Aqui três personagens – Castro, Pedro e o seu pai, vértices de uma construção que se edifica também muito graças ao trabalho do restante elenco – assumem-se também como o próprio espaço. Sentimo-lo na forma como co-habitam a casa, sem que nela se cruzem de facto. O único encontro de toda a peça, entre D. Afonso IV e a Castro, dá-se no exterior. A acção que decorre no seu interior decompõe-se em actos e presenças paralelas, momentos de contemplação e ócio, sem verdadeira justaposição, num dos aspectos mais conseguidos e belos de toda a encenação.

No entanto, se por um lado somos confrontados com um texto que merecia também ele mais espaço, uma violência mais contida porventura, também as pontes que unem a história dentro da casa (que podia ser a nossa, confinados que estivemos durante 2 meses à mercê das histórias que criamos), carecem de aprofundamento. Mesmo deslumbrados perante a beleza do cenário, com um desenho de luz subtil e que logo nos captura para o seu cerne, bem como um som soberbo, sabe a pouco aquele início e final, a pontuar esse strange loop que, pela mão de uma das personagens mais intrigantes de toda a peça nesta abordagem de Nuno Cardoso – o Coro (encarnado pela voz, presença física e imagem de Maria Leite) – poderiam ter ido mais longe que uns poucos apontamentos na linha do nonsense quase cómico.

Óbvio e merecido destaque para o actor Rodrigo Santos e a actriz Maria Leite. O primeiro, com a difícil missão de transportar a personagem de Pedro para uma leitura capaz de sublimar a intempestividade que mora no nosso imaginário. Consegue-o num monólogo final absolutamente fenomenal, onde cada palavra se interliga com cada gesto, tudo no tempo e intensidade certas para assim nos tocar com vívida emoção. A segunda, por ter conquistado o hercúleo desafio de combinar dois coros distintos (do texto original) através de uma personagem ambígua, que tanto se movimenta por fora da acção como a habita à medida que sobe a tensão, e que nesta encenação tão vanguardista, acaba por se assumir como o principal elo de conexão com um público que podia estar ali, naquela sala de estar, procurando no ipod a banda sonora para o serão e acabando rendido ao poder de uma história intemporal.

Ficha Técnica

Castro
de António Ferreira
encenação Nuno Cardoso
cenografia F. Ribeiro
figurinos Luís Buchinho
desenho de luz José Álvaro Correia
sonoplastia João Oliveira
vídeo Fernando Costa
voz Carlos Meireles
movimento Elisabete Magalhães
dramaturgia e assistência de encenação Ricardo Braun
com Afonso Santos, Joana Carvalho, João Melo, Margarida Carvalho, Maria Leite, Mário Santos, Pedro Frias, Rodrigo Santos
produção Teatro Nacional São João
estreia 5Mar2020 Teatro Aveirense dur. aprox. 2:00 M/12 anos

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