Cada livro de Max Porter é um convite à descoberta das possibilidades do romance, na companhia de personagens marcantes e de uma perspectiva poética de temáticas como a masculinidade, o luto, a primazia da Natureza sobre o Homem ou os desafios da infância e da juventude. Servindo-se da mitologia e da alusão, constrói um ambiente peculiar, escapando às armadilhas do paternalismo e do moralismo. A dialética direta das personagens entre si, consigo e com o Mundo, é honesta, cativante e a espaços brutal, sem o “amaciamento” a que a tecnologia (totalmente ausente na sua obra) nos condena.
Lanny está a ser adaptado ao formato série, protagonizada por Rachel Weisz, Shy em filme, já em pós produção, com estreia prevista para 2025, protagonizado pelo recém-oscarizado Cillian Murphy (Oppenheimer, Peaky Blinders), algumas provas concretas do reconhecimento e possibilidades de adaptação da sua obra.
Ativista incansável, o britânico é frequentemente acusado de “woke” e “crowd pleaser”, pelos seus finais esperançosos e felizes (há uma exceção – The Death of Francis Bacon – infelizmente ainda por traduzir em Portugal) e por privilegiar a empatia e a ternura como língua franca, epítetos que aceita e agradece com um sonoro “fuck off”. Criativo sem preconceitos, serve-se de várias formas de expressão artística (teatro, desenho, televisão, cinema), e como Oliver Sacks famosamente fazia, não se coíbe de parar o carro na berma da estrada para anotar ideias no caderno. “É uma forma de vida estranha”, comenta. O Mundo precisa de estranhos como o Max.
A ensolorada entrevista decorreu numa esplanada em Óbidos, no âmbito de um Fólio muito concorrido, em que fez parte de vários painéis de convidados. Eis a conversa possível, cujas inevitáveis imprecisões na tradução desde já lamentamos, editada para efeitos de clareza.
(Contém spoilers para quem não tenha lido Lanny e Shy)
Adoro os teus livros, especialmente este [The Death of Francis Bacon (Faber & Faber, 2021)] por ser um extraterrestre no seu trabalho.
Estou muito feliz por o ter feito porque não vendeu, mas foi onde me senti mais livre. É muito extravagante e estranhamente é o mais verdadeiro dos meus livros, porque vai para além do enredo e qualquer tipo de artifício literário.
Eu faço as pinturas e tu [a freira que o acompanha nos últimos dias] fazes-me sofrer… (risos)
Exatamente. E o que é a vida senão sofrimento.
A morte e a redenção, e também algum alívio e consolo (no final), são temas predominantes nos teus livros. Como fazes para os incluíres em simultâneo e encontrares um ponto óptimo para um livro coeso?
Penso que os livros surgem da compreensão de que estão ligados e que um sem o outro seria artificial ou hipócrita. Além disso, não seria impactante para mim e não contaria a verdade sobre a minha experiência. Também percebo (e só consigo fazê-lo agora, depois de ter escrito quatro livros) que estou comprometido com uma espécie de vontade de elevação. Quero que os livros sejam alegres. Há muitas coisas neste mundo que são profundamente deprimentes e implacavelmente tristes.
Mas não são apenas alegres [os livros]…
Não. Quero que magoem e te deixem com algo que seja edificante, mas não de forma gratuita. Quero que haja algo perturbador. Uma das coisas que os livros e outras formas de arte permitem é criar uma arquitetura moral ou emocional não fixa. Uma sala que muda de forma a todo o momento e que cabe ao leitor percorrer. Assim, terás uma proporção completamente personalizada de desconforto, alegria e esperança e outras pessoas terão uma proporção diferente. Só posso configurar o espaço. E algo que se tornou evidente para mim, na minha tendência para um acorde maior, para estes momentos de conforto muitas vezes no fim dos livros, é realmente tão simples como: passaste dezasseis ou onze horas comigo, duas com este [The Death of Francis Bacon] e sabes o quão deprimente e sombrio é o prognóstico para os seres humanos. Podes ir ver as pinturas de Francis Bacon ou perder um membro da tua família ou um filho, no sentido convencional. Mas o meu trabalho é dar-te algo nutritivo. Isto parece redutor, mas para mim existe uma analogia com árvores para tudo. Por isso, quero que, mesmo que a árvore esteja prestes a morrer, a base de nutrientes por baixo dela ainda seja rica. Ainda está ligada a outros seres vivos. Portanto, quero essa conectividade e possibilidade de um movimento generativo no trabalho. E isso pode implicar que os meus livros se tornem cada vez mais difíceis e mais tristes, mas acho que nunca vou ceder nisso.
Eu teria matado o Shy, por exemplo. Não sei bem porquê.
Porque achas que o querias morto? As pessoas costumam dizer-me que pensavam que o Lanny ia morrer. E eu tento perceber porquê? É interessante.
Na verdade, já esperava que o Lanny sobrevivesse, por causa do lado animista e mítico da história. Ele tinha uma ligação com algo para além do seu tempo e lugar, que o punha a salvo, independentemente de qualquer acto. Portanto, isso foi resolvido desde o início. Mas o Shy tendia para a morte. O seu comportamento, os seus padrões, o caminho que escolhe…
Gosto de ouvir isso. Dizer que ele se “inclina para a morte” é bastante exacto. E a tendência é A coisa. A conclusão do livro foi escrita para a alma empobrecida de uma Grã-Bretanha destroçada pelo Brexit e eu queria essa elevação porque acredito no cuidado como gesto e queria-o salvo.
Faz sentido.
Mas ele está morto. Pode matar-se amanhã. Pode ser uma história de fantasmas. Ele morreu no início. Talvez seja isto que quero que sintas. Então sentiste a coisa certa. O final é irrelevante. O final para mim é uma carta de amor aos professores, que quis incluir porque sinto que temos um problema com a masculinidade e quis mostrar um gesto radical de cuidado naquele contexto. Muitas críticas no Reino Unido sugerem que o final de Shy é sentimental. E eu compreendo porquê. Mas o sentimentalismo é um excesso de ternura e eu não acredito que tal coisa seja possível. Creio que habitamos um mundo de uma violência patológica extraordinária. Acredito que ainda estamos a começar a conceber mecanismos de compaixão que nos podem salvar. E aquele abraço cuidadosamente calibrado que ele recebe no final é para mim, no mínimo, um gesto político, mas principalmente uma solução metafórica para a “tendência”. Estamos todos mortos… (risos)
Fiquei curioso acerca das origens de A Morte de Francis Bacon. Tens um mestrado em artes, certo?
Sim. Mas nunca fiz Bacon. Era o meu segredo culpado. Fiz muita arte performativa americana porreira e psicanálise. Se me dessem um milhão de libras provavelmente não compraria um Bacon. Bem, se calhar comprava um Francis Bacon se tivesse um milhão de sobra (risos), mas prefiro um Joseph Beuys. É aqui que está a minha obsessão adolescente, mas não o meu coração. E no confinamento confrontei-me muito com esse trabalho. Até porque estava a fazer muitas coisas no Zoom e isso fez-me lembrar aquelas caixas de Perspex [acrílico transparente] que o Bacon criou no final da vida, molduras vazias em que o animal fica preso. Éramos todos animais presos. Mas também acho que cheguei a um ponto nos meus romances em que sinto que podem estar a resultar. Recebo muitos e-mails a dizer que as pessoas estão a chorar no autocarro. Vêm aos meus eventos e dizem que este livro as emocionou ou que têm tatuagens de corvos nos braços ou algo do género. Mas isto não é, isto não pode ser. (Aponta para o livro The Death of Francis Bacon). Isto não me pode agradar. Tenho que ir mais além. Esta é apenas a minha pequena tentativa de o fazer e me divertir muito com a linguagem, o que é essencial.
Porquê seis pinturas? [o livro é composto por sete capítulos; o primeiro tem o título de um esquisso e restantes têm o título de pinturas]. Bacon privilegiou os trípticos, daí a pergunta.
Em parte para evitar voltar a fazer três. Três é o meu número mágico.
E o Luto [O Luto é a Coisa Com Penas] também tem uma trindade. Não sabia que era o teu número mágico, mas há muitas trindades no livro.(Crítica AQUI)
Três é o número mágico. Desde o início da minha vida que me interessei muito pelo tríptico pelo que incentiva o espectador a fazer. O facto de ser simultaneamente uma entidade individual e parte de uma sequência é muito interessante. Mas também a ideia de que cabe ao espectador a forma como lida com essa energia. E os meus livros são todos componentes e cabe-te lidar com a energia.
É por isso que escreves em fragmentos? Para completarmos o puzzle?
A energia é trazida por ti, porque tens um conjunto de ferramentas completamente diferente do meu. E é por isso que não procuro controlar nem mediar e os meus livros são pouco expositivos. Não vou dizer quem é bom ou mau. Vou construir um enredo para ti. É como um anti-”texto de parede”, a explicação da pintura, que te retira a oportunidade de a experienciar porque descobriste do que se trata por uma autoridade superior a ti, uma espécie de “vai-te foder” para o autor.
E a ironia é que a peça inicial [do The Death of Francis Bacon] é um esquisso preparatório que ele reivindicou, inevitavelmente.
É uma história verídica? Ele [Bacon] esteve realmente num mosteiro?
Num hospital gerido por freiras. Sim, é tudo verdade.
É realmente irónico porque ele era o oposto disso. E depois quando sabe que vai morrer, obriga a freira a castigá-lo.
Esteve muito doente durante muito tempo. Mas foi ver pela última vez o seu jovem amante, um homem chamado José Capello, que era banqueiro em Madrid. E foi ao Prado. Tomou um martini e depois morreu. E achei tudo muito comovente, mas também bastante trágico.
Teve uma vida muito trágica.
Interessa-me muito a elegia e tentar recriar a cena do leito de morte, esse tipo de inquietação, o lapso de tempo na consciência de uma pessoa que ocorre quando está a morrer ou quando confronta o seu próprio trabalho. E também foi divertido para mim, enquanto estudante de história da arte, ver toda a história da arte ocidental voar à velocidade da luz através da mente do moribundo, misturada com sexo, dinheiro, política e vergonha. E este parecia um território muito rico.
Preocupa-te que as pessoas possam dizer que escreves variações do mesmo livro? A elegia, a fragmentação, a personagem excêntrica que justifica a fragmentação e loucura na escrita…
Talvez. Mas todos os escritores têm obsessões. É por isso que os romances não são o mais importante para mim. O mais importante são as colaborações com outras pessoas no teatro, no cinema, na arte e na música…
Estás a fazer um filme baseado no Shy (clique aqui para detalhes) para a Netflix. Como está a correr?
Está feito. É brilhante, realmente extraordinário. É contado do ponto de vista do professor.
É o Cillian [Murphy] que produz?
Protagoniza e produz. Ele é muito muito bom. É um desempenho surpreendente, diferente de tudo o que já vi. Ele É o professor. É profundamente doloroso de assistir porque não há guarda-roupa, não há pele. Ele É um irlandês de 48 anos e [o papel] foi escrito para ele, por isso a linguagem é a dele. É maravilhoso.
Por isso, para concluir, acho que as críticas são interessantes. Alguém estaria completamente certo se dissesse que estamos novamente no território do Max Porter. O próximo livro não será sobre infância porque sinto que já esgotei [o tema] “menino”.
[A infância] é a origem da personalidade, não há como evitá-lo.
Os meus livros não são romances no sentido convencional. São experiências híbridas e cada vez mais as pessoas tendem a avaliar o meu trabalho não como um romance normal mas como parte desta contribuição contínua que tento dar às questões da dor e do amor. E isso é bom. Gostava de escrever um romance policial, uma comédia romântica e adoro não ter um plano. É emocionante para mim.
Num estilo completamente diferente, lembras-me a Rachel Cusk. O que ela está a fazer é realmente inovador, porque em cada romance destrói ainda mais a estrutura e os temas desse género literário. O mais recente [Parade (Faber & Faber, 2024)] estou a lê-lo novamente porque não compreendi o seu verdadeiro alcance à primeira leitura. Sinto que estás a começar a desenvolver uma linguagem orientada para esse objetivo.
Acho que a Rachel e eu partilhamos uma certa desconexão entre nós e a comunidade de escritores. Acho que não pertencemos a uma escola…
Quando a vejo nas entrevistas fica cada vez mais aborrecida com isso…à procura da resposta que acha que querem ouvir dela, embora já não acredite realmente no que está a dizer.
Ela está-se na tintas. Temos uma cultura crítica muito empobrecida no Reino Unido, muito conservadora, limitada e superficial, que não compreende o trabalho da Rachel e tenta menosprezá-lo. Também envolve misoginia e um certo tipo de anti-intelectualismo, desde os primeiros livros. Acontece o mesmo comigo. Na crítica da imprensa de direita, os meus livros são sentimentais, ou verdes, ou esquerdistas, ou woke e, por isso, as ideias são completamente ignoradas. A certa altura simplesmente não podemos importar-nos com isso. Os leitores encontram o trabalho. Se não o fizerem e eu já não o puder fazer, vou trabalhar numa livraria, tudo bem. Sinto mesmo que estamos numa economia de gestos. E o gesto que estou a fazer é um gesto que tenho plena consciência de que precisa de ser remodelado e confrontado com o mundo em que vivemos. Não estou a tentar vencer ou ser o melhor, estou a tentar colocar algo no mundo com cuidado. E a Rachel é igual, não quer saber. O avant-garde tem um problema. No Reino Unido, este ataque cruel ao pretensiosismo é constante. Por isso, a Rachel Cusk é frequentemente chamada de pretensiosa.
É uma forma fácil de não a ler. Porque é difícil, doloroso e chegamos ao final com aquela sensação: que raio é que acabei de ler?
E pode ser repugnante para ti. O que é a boa arte senão profundamente desconfortável a espaços?
Ela é profundamente ativista e tu também. E não há nada de mal nisso. És mais poético na forma como explanas os assuntos. Já a Cusk é mais: toma lá e lida tu com isto. Não quero saber.
Ela tem um estatuto um pouco estranho, em parte porque se mudou para França. Por isso, sente uma grande distância do establishment literário britânico. Estas pequenas comunidades de pessoas a policiar a ideologia dos outros são ridículas para ela.
Falo de Parade e perguntei sobre o Bacon para abordar a inclusão da Arte na tua obra e o facto de te deslocares confortavelmente entre diversos formatos artísticos.
Claro. Mas os pontos de comparação para o meu trabalho não deveriam ser exclusivamente literários. Deveriam estar nas artes visuais, na música, no teatro e no cinema. Não quero sugerir que sou um especialista nestas coisas, mas é daí que retiro a minha energia. Nesse aspecto, pertenço à geração britânica de modernistas românticos do pós-guerra. Sinto-me muito em casa com gente como Bas Bunting [Basil Bunting (1900-1985), o único poeta inglês a fazer parte do grupo dos objectivistas americanos, de onde se destacou Ezra Pound ou William Carlos Williams] e nas artes plásticas também. Como uma espécie de experimentalismo que procura aprofundar o que herdamos como cultura e como linguagem. Por isso, se os livros forem considerados sentimentais ou “woke” por um sistema mediático de direita, que é cúmplice de todo o tipo de abordagens hediondas (que estaríamos aqui o dia todo se começássemos a nomear), então isso é, em última análise, um elogio incrível ao trabalho, sobretudo no que se refere à masculinidade. Vivemos numa época profundamente preocupante com a instrumentalização à escala global de certas concepções. Estamos na era de Musk, na era de Trump. Portanto, este é um esforço, embora espero que seja relativamente subtil, para tentar minar e questionar isto. E como disse, [trabalhar] a questão da ternura, não só porque se trata de temas delicados, mas também de ternura com a linguagem, com um gesto de atenção quase escultural à superfície, ao detalhe, ao efeito físico que as coisas têm no espaço, a uma espécie de interconectividade das formas. Não creio sejam objectivos vãos. São questões urgentes do nosso tempo. O que estamos a levar? O que estamos a absorver? Como estamos a absorver isso? Quem está a controlar as informações que recebemos? Qual o efeito de algo quando o colocamos no mundo?
E como é que, ao escrever e publicar, controlas a informação?
Não controlo. Tento fazer apenas o trabalho. E depois, como a maioria dos escritores, leva-se isso para o mundo e percebes do que se trata. Tenho sempre um intervalo de seis meses, em que estou em palco a falar sobre os meus livros, e é aí que percebo o que pretendia fazer. Ou não. Isto é um acidente. Portanto, tendo sido formado como editor, penso que sou um escritor profundamente editorial.
Era isso que ia perguntar-te a seguir: a tua experiência na edição e até no mercado editorial ajudou no desenvolvimento das tuas competências literárias?
Acho que sabia com o que queria romper. Então O Luto é a Coisa Com Penas foi uma resposta explícita a um tipo de pensamento algorítmico sobre os leitores, que considerava muito corruptor.
O primeiro livro [Luto] parece muito pessoal. Não sei se é, nem se querias que fosse, mas pareceu-me realmente pessoal quando o li. A forma como se desenvolve, à falta de melhor definição, é demasiado boa para não ser verdade.
Gostava de ver isso numa t-shirt. (risos) Foi pessoal, mas acho que consegui isso escrevendo num espaço resguardado. Penso que se alguma vez tivesse pensado que seria publicado, chegaria aos leitores ou seria traduzido para 35 línguas, toda a operação teria sido imediatamente destruída. Tinha de partir de um confronto íntimo, tanto com a forma como com o mercado, comigo próprio e com as minhas obsessões e experiências pessoais.
Quanto tempo demoraste a terminá-lo?
Seis meses, suponho, meio a brincar. Gosto de fazer colagens, por isso fazia algo e depois voltava e mudava. Agora estou, por assim dizer, exposto. Faço vida disto. Tenho leitores. Tenho de tentar recriar essas condições de todas as vezes. Portanto, tenho certas expectativas e resisto-lhes tanto quanto possível. O meu próximo livro será muito diferente. A minha escolha é não escrever um próximo livro só porque tenho de o fazer, mas é importante para mim passar um ano a escrever um filme ou a ensinar crianças ou o que quer que seja. Não posso tornar-me um criador industrial dos meus livros trimestrais. Não posso e não o farei. E isso em si não pode ser um mero capricho em relação ao imperativo económico em que todos trabalhamos, porque inevitavelmente eles [os livros] têm de se tornar produtos. Tem de ser uma convicção emocional e acho que não preciso de trabalhar nisso. Está lá. E talvez ajude o facto de eu estar numa fase da minha vida em que o centro são as minhas crianças. Não fico sentado o dia todo a pensar em escrever. Vou passear o cão e depois a deixo as crianças na escola, preparo uma refeição…
A vida a acontecer.
Sim. E acho que se assim não fosse me sentiria completamente bloqueado, mas por isso espero que a vida esteja a acontecer nos livros. Porque se me tivesse sentado há dez anos e pensasse em escrever um livro sobre Francis Bacon, teria sido terrivelmente sério, teria sido sobre Francis Bacon, não sobre sexo, cigarros, terebintina, trapos, mexericos, motoristas de táxi, hortelã. Tenho que continuar a viver. Quando preciso de pensar, desenho pequenos fragmentos. São rabiscos, mas é assim que eu penso. É o início de uma ideia e eu preciso das imagens, porque a energia entre a imagem e o texto é para onde me encaminho. Quando chego ao meu portátil, não há terror existencial sobre o que vou fazer. Esta é a minha floresta e daí espero que surja algum trabalho. Às 3 da manhã acordo e tiro notas e depois de manhã quando relei-o penso que porra é esta. Às vezes paro o carro e os meus filhos gozam comigo por dizer esperem, tive uma ideia. É uma forma excêntrica de viver e precisa de ser assim continuamente, porque não quero que os livros sejam planos ou meramente enunciativos.
Uma das coisas em que penso muito é o facto de certos discursos já estarem corrompidos pelo seu uso indevido, como o sentimentalismo, ou já terem sido transformados em armas ou utilizados para fins dissimulados, mas isso não significa que não os possamos utilizar. Acabei de voltar da Palestina e estou a tentar escrever sobre isso e mostrei-o à pessoa com quem estava a viajar por lá e ela disse-me que tinha o tom “Estou mudado pela Palestina”, como seria expectável. Quando queres escrever algo que à primeira vista tenha um registo demasiado sentimental deves fazê-lo. É uma questão de demonstrar que nesta forma de escrita é preciso aprofundar mais para lá chegar de forma adequada, porque senão estamos simplesmente a arrancar-lhe o sentimento. O sentimento tem de estar presente, mas isso tem que ser feito com rigor, e estas duas perspectivas são muito difíceis de conciliar. Deparo-me sempre com isso quando falo com os meus alunos e lhes digo: quando escreves, quero que sejas simultaneamente um especialista editorial sofisticado, um especialista no mercado em que te estás a posicionar e um hippie que sente o “flow”. (risos) Eu acredito que isso é possível.
Todos os livros de Max Porter editados em Portugal têm a chancela Elsinor, do grupo Penguin Random House.
Agradeço ao Folio e à Penguin, na pessoa da Rita Torcato, pela simpatia e cuidado.
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