“Falávamos da vida. Contei-lhe como eram os meus dias; ela parecia não acreditar que alguém pudesse viver num sítio fora do mundo. Um não-lugar. “
“(…) nós, os recuados, tínhamos um problema com tudo o que não fosse o presente. O passado estava perdido, e sem este não se tem esperança nem crença; por isso nunca projectávamos os dias que haveriam de chegar, e só fazíamos pequenos planos.”
A escrita assertiva e a precisão cirúrgica das palavras que não se desperdiçam, são a primeira coisa que nos assalta quando folheamos as páginas de Homens de Pó de António Tavares. A narrativa faz-se de frases curtas, sem rodeios, pontuadas de significado e muitas vezes de uma beleza bastante singular: “Abria os braços como se fosse voar, mas nunca saía do mesmo sítio. Era um pássaro improvável.”, ou “Aos dois, a vida custava-nos e isso fazia-nos cúmplices.”, ou ainda “Um caos; o mundo não se compunha todo por inteiro e uma parte não compunha as outras.”.
É um livro que não nos conduz do ponto A ao ponto B de forma linear. Deambulamos pela narrativa através de percepções, relatos e situações que se vão desenrolando com naturalidade perante os nossos olhos, construindo a trama que, nas palavras do autor, “Tal como nos contos mágicos, teria várias etapas: a travessia, o encontro, a conquista e a celebração. Olha-se para o passado e percebe-se como o que está dentro de nós pode bem ser um rio, um caudal que nos vai transportando e mudando ao longo do seu curso. A travessia, uma viagem que encerra todas as aventuras, está sempre presente, mesmo quando surge o encontro, e os mundos que se encerram dentro de nós se confrontam; este persistirá após o momento da conquista e assim por diante. Cada capítulo soma-se ao que já decorreu e juntos prosseguem a narrativa, até que a celebração seja, numa assombrosa dialética, a síntese de tudo e o seu fim, mas também um recomeço.”.
Homens de Pó é a história de um grupo de homens vindos de África – recuados –, no Portugal caótico e revolucionário do pós 25 de Abril que, sem outro rumo ou perspectivas, dão por si a trabalhar como trabalhadores de construção civil e a viver no estaleiro em contentores, completamente desterrados e sem quaisquer outras referências que não as parcas memórias que guardam de amigos e familiares. À noite contam histórias uns aos outros, por necessidade e cumplicidade, dado que nada mais lhes resta do passado. De dia terraplanam as estradas poeirentas por onde passarão os carros dos ricos; um trabalho duro e extenuante que lhes consome o corpo e anestesia o espírito, despojando-os de qualquer esperança relativamente a um futuro. Como o pó que se lhes cola ao corpo e não os deixa ver, vivem num limbo entre o passado que perderam e o futuro que não conseguem vislumbrar.
Pela mão de um narrador que nunca se apresenta, mas não nos omite nada, vemos a sua história cruzar-se com a de outros semelhantes a si, que dão por nomes improváveis como Bombazine, FBP, Patex, Kanine, Rapaz-Ciência, ou Bruce Lee, criando a fantasia que as verdadeiras identidades destas personagens ficaram na terra que os viu nascer. Pelos seus olhos, privamos intimamente com as suas percepções e constatações acerca de um Portugal caótico e ainda imerso no rescaldo revolucionário do 25 de Abril de 1974. Pelos seus olhos, sentimos o desespero do desenraizamento e da subsequente falta de identidade que assolou milhares de pessoas que se viram despejadas num país que conheciam só de nome. Pelos seus olhos participamos no processo revolucionário em curso. Mas pelos seus olhos vemos também o reverso deste quadro revolucionário e quase apocalíptico: a luta pela identidade, o apego às memórias, a espera paciente pelo amor, a tentativa naïve de afirmar uma posição, de reivindicar uma crença:
“Perguntava-me: sou um revolucionário? Um dia indaguei o FBP se o éramos e ele respondeu-me que sim.
E fascistas, somos?
Também podemos ser; nunca se sabe. Estar na confusão é como andar à noite no mato; podemos ser tudo.”
Há em António Tavares uma capacidade de transmitir grandes ideias com poucas palavras, de acossar e provocar o leitor com episódios que surgem como pequenos apontamentos na história, mas que angustiam pelas questões com que nos deixam e, mais ainda, pela certeza de que não nos serão dadas respostas. Incomoda, mas com subtileza. Frustra, mas sem desesperançar.
Homens de Pó é o quarto romance de António Tavares, que nasceu em Angola em 1960. Cursou Direito em Coimbra, escreveu peças para teatro, foi autarca, jornalista (fundador e director do periódico regional A Linha do Oeste), tendo também fundado e coordenado a revista de Estudos Litorais. É um romancista galardoado, tendo sido finalista do Prémio Leya e do Prémio Literário Fernando Namora com As Palavras Que Me Deverão Guiar Um Dia. Venceu o Prémio LeYa em 2015 com O Coro dos Defuntos e o seu romance Todos os Dias Morrem Deuses recebeu uma menção honrosa no Prémio Literário Alves Redol.
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