Lições de Grego é um poema em prosa da sul-coreana Han Kang, cujo leitmotif é o encontro entre um professor de grego, cego, e uma aluna sua que abandona a fala depois de um trauma profundo.
Tal como o O Homem Sem Qualidades ou a Metamorfose me fazem invejar os alemães nativos, ou os suecos com a Septologia e o teatro de Jon Fosse, também este livro me deixa curioso sobre o ritmo e a sonoridade no coreano original.
Han Kang consegue a proeza rara de publicar livros realmente diferenciados, quando o mais fácil seria repetir fórmulas gastas ou provadas como a de A Vegetariana.
Com as limitações sensoriais e emocionais que os tolhem, os protagonistas caminham irremediavelmente para um encontro de almas e solidões desoladoras, apoiando-se no poder mutuamente reconhecido do toque e da Palavra, não apenas dita, mas também escrita, sentida, física, sinestésica.
“…se alguma vez lançar um livro escrito por mim, quero que haja uma edição em braille. Quero que alguém passe a mão sobre cada letra e cada linha do livro. Isso seria…acho que seria uma verdadeira ligação, uma forma de nos tocarmos verdadeiramente.” (115)
O registo varia entre o sonho vívido e a fria realidade em pedaços, com as peças possíveis para completar o puzzle da sensibilidade e da experiência. Os elementos naturais assumem primazia na narrativa, condicionando as personagens e não como o habitual fundo que espelha estados de alma. Para tal, Han Kang liga-os a trechos fulcrais como este:
“Até a noite acabar, não há para ela palavras nem cores. Está tudo coberto pela neve espessa. Uma neve que é como o tempo, o tempo que se fracturou ao congelar, uma neve que vai caindo sobre o seu corpo rígido. A criança ao seu lado não está lá. Deitada imóvel na borda da cama, ela invoca o sonho, uma e outra vez, para beijar as pálpebras quentes do filho.” (108)
Uma narrativa de perda e transformação, de um desespero fundo e comovente, sem esperança, em que as faltas e oportunidades perdidas assombram sonhos e rotinas, até penetrarem o que persiste dos seus corpos e espíritos. As perdas não são imediatas (inclusive da visão e da fala), o que acresce ao ingrediente da angústia, porque o inimigo tempo é inclemente. O Professor, ainda não completamente cego, tenta ocultar a sua condição a cada aula. No exterior, de volta a si, debate-se com uma identidade dúbia, quebrada por um passado dividido entre várias cidades alemãs e a Coreia do Sul, em que sentia plenamente, e a inocência da infância lhe mostrava todo o potencial do Mundo, hoje cadeia onde espera, perdido, pelo momento do regresso a casa, onde tudo é pelo menos reconhecível.
Já a aluna vive despedaçada pelo falecimento da mãe e pela perda da custódia do filho, que pouco vê. Entre memórias e sonhos que se forçam à sua rotina, propositadamente esgota o físico a cada noite, com longas caminhadas, ignorando as condições climatéricas, até o sono se tornar única solução para a dor.
Nada do que lemos é manipulador ou reflexivo. Há um empurrão para o mundo sensível em toda a sua magnitude e poder, a que se junta uma reconstituição narrativa, de grande apelo e beleza, de toda a fisicalidade das personagens, verdadeiro elenco das muralhas que os isolam do quotidiano que lhes é estranho. Os silêncios e omissões carregam o peso do passado que os assombra e agita, prisões a céu aberto que decidiram habitar como penitência, na esperança de redenção.
O seu encontro é inesquecível e salvífico, um epílogo depois das suas penosas epopeias interiores. Mas, aprendemos nós com eles, o caminho salva além-dor.
“com os seus corações apertados um contra o outro, ele conhece-a tão pouco como sempre. (…) Não sabe que os olhos dela estão reflectidos nos dele, e novamente os dele… num reflexo sem fim. (…) Para encontrar o ponto mais macio do rosto dela, fecha os olhos e apalpa-lhe o rosto com o seu. (…) uma fotografia do Sol surge por detrás das pálpebras fechadas. (…) Manchas solares que explodem (…) Se as víssemos de perto (…) as nossas íris rebentariam. / Ele beija-lhe a boca sem abrir os olhos. (…) Manchas solares explodem, silenciosas, ao longe. Corações e lábios tocam-se através de uma linha divisória, ao mesmo tempo unidos e eternamente separados.” (184, 185).
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