Chegado ao Parque da Cidade no dia 6 de Junho, aflige-me uma ideia: será que a idade está finalmente a levar a melhor? Cliente assíduo e admirador do Primavera Sound Porto desde a sua fundação em 2012, a sensação de desorientação e algum mau humor diante das mudanças, depois de um ano de ausência, foi inevitável. Mas venham comigo. Prometo um final feliz e que não será apenas mais um longo desabafo de uma baleia branca perdida no mar da mudança.
A epopeia do estacionamento foi seguida de perto pela busca da área de imprensa e dos palcos em si, agora espalhados de forma aparentemente desconexa pelo recinto, subitamente maior do que aquele que me era familiar. Na praça da alimentação, temos vista desimpedida para o palco principal (baptizado de Porto), e da Estrada da Circunvalação é bem visível e audível o ecrã gigante desse palco. Um amuse-bouche para os infelizes que ficam de fora? Por outro lado, opção genial da produção do espectáculo, com bandas e roadies a acederem ao palco vindos da estrada, agilizando a montagem de estruturas por vezes complexas, como foi possível testemunhar com os espectáculos de SZA e Lana del Rey.
O recinto abriu-se ao exterior (para a rua e para o mar), a música mudou, o público multiplicou-se e coloriu-se. A imprensa foi arrumada ao lado do palco secundário Plenitude e não faltaram croquetes para todos os mais famintos em trabalho. O carro ficou a quilómetros (com a autarquia de Matosinhos a dificultar o desiderato do estacionamento, vedando as bermas da estrada próximas do recinto ou levantando as pedras da calçada durante largas centenas de metros), mas os gémeos e os glúteos agradecem.
O público transfigura-se com o decurso do festival, envelhece até ao seu apogeu sabatino, com a chegada em peso dos pais e avós, em busca de reavivar a chama juvenil, finalmente livres para se inebriarem de forma socialmente aceitável, com o beneplácito dos responsáveis involuntários e o desdém algo enternecido da descendência.
Os voluntários na alimentação, bebidas e promoções diversas são adolescentes. Simpáticos e atenciosos, com uma pontinha de cinismo e condescendência a la geração Z que só lhes fica bem e (ainda) não incomoda. Demonstram paciência e condescendência infinitas diante das conversas habituais, cujo efeito, já há décadas, era um sorriso forçado e algum “cringe”.
A cantiga ainda é uma arma, meio século depois dos cravos nos canos da espingardas, mas não de destruição ou revolução; antes de inclusão e paz, câmara de eco de uma geração que não se coíbe de fazer o que quer e se bate por isso, apesar dos relatos manifestamente exagerados do seu conformismo e apatia.
A análise/diatribe que se segue será aparentemente caótica, porque de formatos gastos e ordenados está a internet cheia. Vou ao sabor das sobras da passagem do tempo e do impacto mediático.
O Primavera Sound Porto 2024 percebeu que era preciso mudar algo para que tudo continuasse na mesma. Começando pelo cartaz. O Primavera Sound Porto sempre prezou o alinhamento mais indie-rock, atraindo um público mais experiente nestas andanças e com alguma “cultura” musical, que trazia alguns familiares e amigos congéneres para desfrutarem do espaço e do cardápio. Depois de algumas edições, cimentada a viabilidade financeira e capacidade organizativa, foi paulatinamente introduzindo chamarizes e diversificando a oferta, com resultados imediatos e grandes massas a estrearem o solo verde do Parque da Cidade. Sem pensar muito, relembro a chegada triunfal de Kendrick Lamar em 2014, que com duas ou três músicas convenceu os mais renitentes do seu poder em palco e pôs todo o recinto a saltar, mas também J Balvin, Rosalia e Solange em 2019 e o escândalo quase sacrílego das suas presenças no palco principal, com três concertos memoráveis, Tyler the Creator em 2018… etc. Destes, KDot e Rosalia, entretanto transformados em pesos pesados das arenas mundiais, regressaram em 2023 e foram recebidos com enchentes inéditas, provando que a fórmula estava certa.
Nada aconteceu de repente. A mudança tem sido testada e aprovada pelo público, afinal o melhor juiz do sucesso de eventos desta dimensão. A critica rendeu-se às evidências e o festival seguiu o seu caminho até 7 de Junho de 2024, em que mais de quarenta mil pessoas se juntaram para consagrarem aquela que, arrisco dizer, talvez seja a única diva da música pop actual. Nascida Elizabeth Woolridge Grant, para os palcos e ouvidos do Mundo criou a personagem Lana Del Rey, que deve tanto ao glamour da lenda de Hollywood Lana Turner, como à lassidão das costas cálidas de Miami e a algo tão prosaico como o Ford Del Rey. Talvez não seja a santa milagreira que tantos afirmam ter visto, quais pastorinhos míopes na Cova da Iria, mas a verdade é que vi a luz depois da sua aparição. Eis a chave para descodificar o Primavera Sound Porto 2024, mas já lá vamos.
Pulp foi a redenção para a geração X, os/as “meia-idade” finalmente em casa no dia derradeiro do festival, relembrando outros tempos mais ágeis com os seus contemporâneos. Telemóvel em punho, muitas vezes com flash ligado a largas centenas de metros do titânico, desengonçado e carismático Jarvis Cocker, mas bem pertinho de quem os ladeava e suportava a iluminação não solicitada com o sorriso possível. O anfiteatro natural do ressuscitado Palco Vodafone (fora de serviço no dia anterior), foi pequeno para tanta prova de vida social e o ambiente era eléctrico, com a banda a reagir em consonância. “Mais do mesmo” diriam alguns, “concerto da minha vida” outros tantos, surpresos com a pujança do provecto e desbocado britânico e seus companheiros de viagem de décadas. Um repetente que nunca (se) cansa e cumpre sem mácula o papel de mestre de cerimónias ligeiramente senil.
No dia anterior, em simultâneo com a festa brava das explosivas Last Dinner Party tínhamos a calma contemplativa dos Lambchop. Pensem no que seria um super-grupo com Kate Bush, Haim, Florence and the Machine e Anna Calvi, com uns tiques barrocos, e têm a fórmula vencedora destas meninas talentosas, que deixaram suor e felicidade pura no palco principal, com direito a uma versão de “Wicked Game” de Chris Isaac, entre outras pérolas, confirmando os créditos granjeados pelo excelente disco de estreia Prelude to Ecstasy (Island Records, 2024). No lado oposto do recinto, quem quisesse ouvir a voz roufenha de Kurt Wagner, teria que estar a escassos metros do palco. Com boné negro e os óculos de armação grossa da mesma cor, imagem de marca e uniforme, cantava palavras bem soletradas entre passas de um cigarro infinito. O tempo suspenso e a sensação de partilha de um segredo confortável com quem ombreava, entre olhares cúmplices com estranhos, foi o que ficou, para além da música. Um pedaço de história da Americana e do indie com raízes mais country para quem quisesse testemunhar. Voz e piano bastaram para cinquenta minutos de placidez bem merecida.
Mitski foi a surpresa do dia inaugural. Sem qualquer apresentação abriu o concerto no Palco Vodafone, com “Everyone” do seu mais recente álbum Laurel Hell (Dead Oceans, 2022). Diante dos aplausos entusiastas de um público muito jovem e algo carente, a japo-americana “leu a sala” e sentiu necessidade de quebrar a quarta parede. Pedagógica e atenciosa, sob pena de deixar a ironia e teatralidade da sua actuação passarem sem enquadramento, fala às massas: “Perdoem-me se não vos falar durante a actuação, mas estou a interpretar uma personagem. Mas isso não quer dizer que não vos ame. Sei que não nos conhecemos. Mas isso não impede que vos ame mesmo assim, certo?”. A ironia definitivamente voou alto sem aterrar em nenhum dos imberbes rostos e a performance seguiu, impecável, até ao encore com a inevitável “Nobody” e a dramática “Washing Machine Heart” do já longínquo Be The Cowboy (Dead Oceans, 2018), entretanto recuperada eficazmente para a geração TikTok. Uma mescla bem conseguida entre electrónica, físicalidade dramática e coreográfica, uma sonoridade algo operática, country e folk, perfeita para ambiente de festival. Um dos melhores concertos do Primavera Sound Porto, que merecia honras de palco principal.
SZA era o próximo destino obrigatório, para tentar confirmar o hype criado pela sua música contagiante e persona desafiadora. Uma voz imaculada, encenação cuidada e alinhamento com todos os temas essenciais de uma carreira ainda curta mas de grande relevância, ganharam o público. Cumpriu o prometido e deixou todos sedentos do regresso para um concerto em nome próprio numa arena à sua medida.
A contar com a chegada do público mais maduro ao recinto, o dia 8 teve hardcore e punk bem rasgado, pelos Mannequin Pussy, rock tuga pleno de empatia e abraços do homem tigre em versão trio power rock, e a versão lo-fi dos Pulp, oraculizada para o séc. XXI nas letras e melodias melancólicas e emocionalmente desligadas dos manos Dessner e Devendorf e do intelectual Matt Berninger.
Legendary Tigerman trouxe o sua nova banda ao palco principal, exibindo as explorações electrónicas do seu mais recente Zeitgeist, sem abdicar do Rock e dos clássicos da sua invejável carreira. (Para quando uma autobiografia? Não devem faltar histórias para contar…). A mensagem de apelo ao voto (em vésperas de eleições europeias) e de empatia e respeito pela diferença, com banda sonora “True Love Will Find You In The End”, hino do saudoso Daniel Johnston, foi um dos momentos quentinhos do festival, com direito a abraços ao público e súplicas de presença no momento sem auxiliares multimédia. Destaque para a carismática Sara Badalo, uma bomba rock de feminilidade selvagem bem vinda ao espectáculo do veterano conimbricense.
Mas o dia-chave deste Primavera Sound Porto, que ficará nas calendas, foi 7 de Junho.
Depois de uma tarde infernal, em que as intempéries e consequentes problemas técnicos fizeram KO ao Palco Vodafone, anulando a actuação do duo Justice, e com um cartaz morno, debaixo de um céu que ameaçava ruir, adivinhava-se o pior para uma das actuações mais desejadas de sempre no Primavera Sound Porto e, segundo o director do festival José Barreiro, a mais difícil de contratar à data: Lana Del Rey. A própria revelava preocupação nas redes sociais, quando pedia ao público que viesse assistir à tempestade. A transmissão na RTP estava fechada e tudo a postos quando chegou a hora temida, pouco depois das 23h. Telemóveis em punho, milhares em directo para o éter, recepção delirante da diva americana. Abriu com “Without You” e “West Coast”, em que pouco mais teve que fazer do que sorrir, agradecer e deixar o público transmitir-lhe amor e confiança, e cantar cada sílaba como se as suas vidas dependessem disso.
Amor e confiança talvez sejam as melhores lições que levo deste festival. Conhecedor algo renitente da carreira de Lana del Rey, quis tirar dúvidas bem perto da frente do palco, tentar entender a origem da devoção de tantos milhares. Não só consegui, como dei por mim a cantar músicas que nem me lembrava conhecer, com uma vontade inexplicável de abraçar quem me rodeava e extravasar a alegria que me invadia. As multidões são poderosas. Tudo é simultâneo, como poros de uma mesma pele e os actos de ternura, fáceis para quem gere as emoções em palco, tomam dimensões massivas. Não foram os bordões do costume que se ouviram de Lana. Antes uma simplicidade feita de timidez e ânsia de contacto e partilha. Ver e ser visto, como poucas vezes testemunhei num concerto, nunca num desta dimensão massiva. Gestos coreografados certamente, fala o meu cinismo. A americana chega-se aos fãs, aceita adereços, fotos, autógrafos, abraços, beijos, durante longos minutos, algo incrédula e intimidada. Público rendido. Mais do que isso: os duvidosos convertidos. Eu incluído. “I´m in Miss Grant”. A magia do “aqui e agora”, multiplicada por milhares, sem esforço. A voz é frágil, vacila, não se impõe pelo seu poder. A presença é magnética, a música ressoa e permanece. “The Grants” é cantado a capella, harmonizando vozes com as três cantoras de suporte na frente de palco ladeando Lana e acompanho as letras sem vacilar, como se as repetisse desde sempre.
Saio dali por instantes, vejo-me de fora. Já estou a escrever sem nada à mão. Ossos do ofício. Avento uma explicação para o desconforto inicial aquando da chegada ao festival e o percurso até esta quietude, quase osmose espiritual. Tento avaliar, ser empático com tantos de diferentes cores, todas as do espectro do arco-íris e fugir aos clichés habituais. A mente viaja, procura padrões. No início de cada concerto, os ecrãs anunciam que o Festival se tornou “Queer Destination”, uma parceria que garante que toda a equipa recebeu formação para tornar o espaço e o evento verdadeiramente seguros e inclusivos para a comunidade queer e talvez esse avanço tenha tido reais consequências no ambiente geral. A liberdade e a segurança para ser quem se é e quer ser, numa sociedade que recompensa a performance mais do que a essência; vestir, falar e beijar sem olhar por cima do ombro à espera do despeito e da reprovação, são tudo.
Entretanto, Lana avançou no alinhamento:
“They write that I’m happy, they know that I’m not
But at best, you can see I’m not sad
But hope is a dangerous thing for a woman like me to have
Hope is a dangerous thing for a woman like me to have
Hope is a dangerous thing for a woman like me to have
But I have it”
Tudo ligado. Mas nada de milagroso. Por detrás da magia, há trabalho árduo de uma organização dedicada que segura as pontas, mantendo o conforto de quem o frequenta, enquanto se liga com a cidade que o acolhe e recebe estrelas cada vez mais agregadoras nos seus cartazes. Equilíbrios difíceis, que implicam sensibilidade, atenção ao detalhe e aos contextos e coragem de correr riscos, para depois colher as recompensas. Sem querer ser regionalista, o Porto é diferente. Seria no mínimo surpreendente que o Primavera Sound Porto 2024 não se deixasse contagiar por esta integridade e carácter do povo que o acolhe e povoa, juntamente com tanto público internacional.
O Primavera mudou mas é o mesmo. Aumentaram as selfies, os directos televisivos, as entradas e bilhetes vendidos, a popularidade dos “cabeças de cartaz”, que tocam para todos sem excepção. O conforto do habitual é inimigo do progresso. O amor e devoção outrora reservados aos heróis pioneiros de narinas furadas, Doc Martens e saraivadas de guitarra com um máximo de três acordes, são hoje para as vozes hesitantes e confessionais, que conjugam bom marketing com a vulnerabilidade e bases instrumentais minimalistas. Menos será sempre mais, mas uma explosão de tudo em todo o lado ao mesmo tempo também refresca os sentidos. As angústias e inseguranças não têm idade, apenas vestem roupas diferentes e têm uma linguagem mais cosmopolita, guardando a intimidade para as redes sociais.
O Mundo mudou e o Primavera acompanhou-o e cresce saudável.
O Primavera Sound Porto 2024 percebeu que um festival é como um grande amor: atrai-nos pelo exterior para nos arrebatar pelo carácter e frenesim interior.
Sejam bem-vindos e até 2025.
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