home Antologia, LITERATURA Sobre o Autoritarismo Brasileiro – Lilia Moritz Schwarcz (Objectiva, 2020)

Sobre o Autoritarismo Brasileiro – Lilia Moritz Schwarcz (Objectiva, 2020)

Fazer um retrato da situação actual do Brasil, procurando respostas numa análise à sua História para as interrogações expostas na convulsão social hoje evidente, é tarefa hercúlea. Lograr fazê-lo com isenção e imparcialidade é mérito reservado a muito poucos. Lilia Moritz Schwarcz consegue-o neste Sobre o Autoritarismo Brasileiro – Uma breve história de cinco séculos de forma absolutamente brilhante.
A autora circunscreve a origem de muitos dos problemas hoje vividos no Brasil – a violência e a profunda desigualdade social, por exemplo – a uma cultura histórica fundada no colonialismo, no patrimonialismo (que depois se repercute no mandonismo) e na própria escravatura. O Brasil foi um dos países que mais tarde aboliu a escravidão e é inegável que disso decorrem (e ainda persistem) diversas consequências sociais. Se hoje identificamos um vincado sistema de castas na sociedade brasileira, com particular enfoque nas características raciais, na análise aqui desenvolvida percebemos que tal tem origem na convivência ainda demasiado recente com um passado escravocrata. Mas os problemas que facilmente diagnosticamos hoje não têm causa única, mas antes diferentes origens que se cruzam e relacionam entre si, como bem aponta Schwarcz.
A própria cultura democrática brasileira é extremamente jovem. Com cinco séculos de existência, apenas decorreu num sistema republicano e desse, muitas décadas (e bem recentes) foram passadas em ditadura militar. Uma das análises mais interessantes deste livro foca-se nas repercussões que o sistema colonial imprimiu na organização da sociedade republicana e democrática: além do forte sistemas de castas já referido, a predominância da cultura patriarcal e uma tendência patrimonialista ainda hoje assumem forte preponderância na organização da própria sociedade. Segundo Schwarcz, a corrupção, que tantas vezes aparece descrita como um problema endémico encerrado em si mesmo, surge não como causa mas precisamente como consequência destes dois traços dominantes da cultura brasileira.

A autora consegue outro feito notável, ao desmontar as narrativas efabuladas que pintam o Brasil como um país pacífico e tolerante. Ainda hoje em Portugal se olha para o processo de colonização do Brasil com bonomia e Schwarcz confronta essa visão com a dura realidade: a cultura indígena, por força de não se ter submetido à escravidão dos “descobridores”, foi violentamente suprimida pelos colonos durante os séculos que se seguiram, os mesmos que fomentaram um lucrativo negócio de escravos vindos de África. Nada teve, ou tem, de pacífico, e a autora desvenda-o de forma inteligente. Mesmo no que toca à tolerância, os números por ela apresentados não mentem. Tanto a violência como a desigualdade social afectam sobretudo as minorias da sociedade brasileira: raciais, religiosas, sexuais ou de género. E ao contrário do que pretendem veicular as narrativas actuais – sempre afectas ao poder político vigente, como bem demarca a autora – essas minorias não são causa, mas antes consequência de todo um passado cultural que favorece essas formas de opressão.
Mas Schwarcz faz mais do que simplesmente apontar tudo isto. Todos estes problemas evoluíram para se tornarem interseccionais, fundiram-se nas diferentes ramificações que assumem no quotidiano dos brasileiros, ao ponto de formarem uma barreira quase intransponível, onde discernir as causas é apresentado como impossível. Para além de ter conseguido expor a mentira útil que isso representa, Schwarcz apresenta propostas concretas para o combater.
A historiadora recusa usar a História como álibi, como aliás, denuncia que vem sendo usada. Segundo ela, há que olhar o passado para compreender como se repercute no presente, mas tal exercício não pode servir para desculpar tudo o que ainda ficou por fazer, nem a polarização que se seguiu e que tem escolhido como bandeiras precisamente o retornar a um passado de ouro que nunca existiu. E num mundo crescentemente polarizado, onde o revisionismo histórico vem conquistando terreno de forma galopante, essa será talvez a mais importante mensagem deixada por este livro.

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