O espectáculo começa com sete actores em palco, um dos quais permanece silencioso enquanto os restantes dividem entre si, alternadamente como um coro trágico, a narrativa da história da sua vida. Somos assim conduzidos de forma divertida pela infância e adolescência de Gorge Mastromas. As falas são óptimas e os actores proferem-nas com graça. Todos vestem de vermelho, à excepção daquele que, percebemos, é Gorge. A movimentação em palco e a expressão vívida que emprestam à história, tornam este intróito, a nosso ver, a parte mais bem conseguida da peça.
Gorge Mastromas tem uma história comum, em que cada um de nós se revê. Uma família regular, com um irmão, testemunha a ascensão e queda do seu ídolo de infância, perde-se nas aventuras e experiências amorosas da adolescência, faz escolhas nas encruzilhadas determinantes do seu percurso. Bondade ou Cobardia? O que o move? O que nos move?
Quando confrontado com a veracidade dos seus valores, Gorge Mastromas dá uma reviravolta na sua vida e torna-se um de poucos: um todo-poderoso manipulador de destinos, um camaleão que veste a pele que mais conveniente com uma facilidade atroz. Renega quem foi, o que foi, as escolhas feitas até então, sempre pautadas mais pela bondade que pela cobardia. Adopta como partitura para o seu destino três regras simples:
«Número um: sempre que quiseres alguma coisa agarra-a; Número dois: para conseguires tudo o que queres só precisas de ter vontade absoluta e capacidade de mentir a ti próprio; Número três: a eficácia de uma mentira só fica comprometida pela tua ligação ao desfecho da mesma. Por isso nunca penses no resultado, supõe sempre que podes ser descoberto, vive cada segundo como se fosse o último. Nunca, jamais, te arrependas.»
O texto, de Dennis Kelly, é de facto fantástico, faz-nos reflectir sem nos conduzir expressamente a um resultado ou a uma moral. Existirá, ou não, a chamada justiça poética, que pune os cobardes e os infames? Há um equilíbrio que é sustentado pelo minimalismo dos adereços e pela sobriedade dos cenários. A transformação de Gorge evoca inevitavelmente o que conhecemos de algumas figuras públicas e deixa-nos com uma questão: em que momento terão feito a escolha?
Gorge Mastromas foi um homem comum que se metamorfoseou quando tudo levaria a crer que tal não seria viável. A escolha está sempre ao alcance de todos. Os monstros são, porventura, banais criaturas a quem foi dado a escolher. Esta constatação talvez seja, em rigor, o cerne mais profundo e dramático da peça. Bondade ou Cobardia?
Da boa encenação de Tiago Guedes e da forma escorreita e jocosa como decorre a narrativa, (graças a um elenco de luxo que integra António Fonseca, Beatriz Maia, Bruno Nogueira, Inês Rosado, José Neves, Luís Araújo e Rita Cabaço) já falamos. O que falhou então, para que saíssemos do Teatro D. Maria II com a sensação de incompletude? A densidade dramática, a espessura negra, a aura particular que deveria assistir a Gorge Mastromas e que Bruno Nogueira, apesar de não comprometer, fica aquém de lograr. Foi bom, mas podia ter sido melhor.
Uma entrevista interessante com Bruno Nogueira, pela Inês Menezes AQUI
A peça mantém-se em cena na Sala Garrett do Teatro Nacional D. Maria II até ao dia 28 de Junho.
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Foto © Filipe Ferreira