A Primeiros Sintomas regressa ao repertório do dramaturgo russo, com a encenação de Três Irmãs, em cena no CAL – Centro de Artes de Lisboa até ao dia 20 de julho. Trata-se da penúltima peça de Tchékhov, estreada originalmente pelo Teatro de Arte de Moscovo em 1901. A acção, que se situa numa cidade de província da Rússia Czarista, apresenta-nos três irmãs (Olga, Macha e Irina) que levam uma vida estagnada e ocupam o tempo, ora evocando recordações belas da antiga vida que tinham em Moscovo, ora sonhando e fazendo planos para voltarem para lá. Pelo meio vemos o quotidiano fluir naturalmente; ouvimos as personagens a filosofar; mas factualmente (ou sintomaticamente?) as irmãs continuam estagnadas.
Tchékhov tinha um impulso súbito para rir quando escutava alguém, justamente nos momentos que não tinham graça nenhuma. Não eram as palavras que lhe provocavam o riso. Ao mesmo tempo que ouvia o relato, Tchékhov reescrevia-o mentalmente, reimaginava-o e reconstruía-o, sacava-lhe as possibilidades humorísticas. Era isso que o divertia. Ele ouvia, pensava e imaginava mais depressa do que o próprio narrador. (*)
Foi assim que Meyerhold o descreveu. Anton Tchékhov (1860-1904), que além de escritor era médico, lutou contra a tuberculose ao longo da sua carreira teatral, tendo falecido com apenas 44 anos. Condição que terá, certamente, influenciado a sua produção dramática e pode elucidar a leitura das chamadas grandes peças. Entre as quais se destacam, com regularidade, A Gaivota (1896), Tio Vânia (1897), Três Irmãs (1901) e O Ginjal (1904). Tchékhov era um seguidor do Naturalismo. Não numa tentativa de representar fotograficamente a vida na arte, mas antes de lhe captar a atmosfera. As suas peças iam no sentido oposto às de Henrik Ibsen: não respeitavam leis de unidade e de causalidade, nem obedeciam à estrutura das peças bem-feitas. Tolstói era um crítico feroz das suas peças, apontava-lhes frequentemente a falta de grandes motivos e teatralidade.
Onde é que se chega com os teus heróis? Do sofá para a casa de banho e da casa de banho de volta para o sofá? […] Não consigo gostar das tuas peças. As de Shakespeare são terríveis, mas as tuas são ainda piores. (**)
A intenção artística de Tchékhov era clara: revelar a grandeza por detrás do pequeno.
Porquê escrever sobre um homem que entra num submarino e vai para o Pólo Norte para se reconciliar com o mundo, enquanto a sua amada se atira do alto de um campanário? Tudo isso é falso e não acontece na vida real. É preciso escrever sobre coisas simples: como Semionovitch casou com Maria Ivanovna. Só isso. (***)
A problematização da leitura das peças tchekhovianas é histórica. Tal como é histórico o longo desentendimento com Stanislavski. Tchékhov acreditava ter escrito comédias e Stanislavski estava convencido de que eram tragédias. O dramaturgo discordava da abordagem stanislavskiana aos seus textos – a ênfase no sentimentalismo e a recriação cénica realista.
De facto, ele nunca foi capaz de criticar as suas próprias peças e reagiu sempre com interesse e espanto às opiniões dos outros. A opinião que mais o espantou – até ao dia da sua morte não conseguiu aceitá-la – foi a de que as Três Irmãs […] era um drama sério sobre a vida russa. Ele estava genuinamente convencido de que era uma comédia alegre, quase uma farsa. (****)
A versão encenada por Bruno Bravo é um exemplo das diferentes acepções do imaginário tchekhoviano. O cenário, os adereços e os figurinos realistas, assinados por Stèphane Alberto, contrastam com o acompanhamento sonoro e musical, a cargo de Sérgio Delgado, e com a representação estilizada do elenco de actores: António Ignês, António Mortágua, Beatriz Vicente, Bruno Bravo, Catarina Silva, Eva Soares Mendes, Joana Campelo, Joana Campos, João Pedro Dantas, Mafalda Jara, Marco Delgado, Murilo Oliveira, Nídia Roque, Sofia Marques e Tiago Amado Gomes. Também esta encenação parece reforçar a teoria de Stanislavski ao acentuar um olhar trágico sobre a peça. Contudo, deturpa qualquer expectativa de representação realista. (Stanislavski teria chamado os Sapadores de Lisboa para apagarem o incêndio do terceiro acto…)
Tchékhov conseguiu equilibrar a criação artística (o trabalho) com a progressão da tuberculose. Talvez ambicionasse o mesmo para as suas personagens, que fossem resilientes a todas as circunstâncias. Qualquer encenação será inevitavelmente diferente da visão e intenção originais do autor teatral. No final triunfará sempre o gosto e a capacidade de avaliação dos espectadores. O espectáculo continua em cena até ao dia 20 de julho no CAL – Centro de Artes de Lisboa (de quarta a sábado, às 21h e domingo, às 17h). Se lhe agradar o Drama, óptimo! Mas se não gostar, não se aflija. Tolstói odiou também. (*****)
Nota de pesar:
Termino este artigo prestando homenagem a Filipe Guerra, que partiu recentemente. Filipe Guerra e a esposa, Nina Guerra, foram responsáveis pela tradução portuguesa de inúmeras obras russas. Incluindo a colecção de peças de teatro de Anton Tchékhov, consultada para este artigo.
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FICHA TÉCNICA
texto | Anton Tchékhov
tradução e encenação | Bruno Bravo
interpretação | António Ignês, António Mortágua, Beatriz Vicente, Bruno Bravo, Catarina Silva, Eva Soares Mendes, Joana Campelo, Joana Campos, João Pedro Dantas, Mafalda Jara, Marco Delgado, Murilo Oliveira, Nídia Roque, Sofia Marques e Tiago Amado Gomes
música | Sérgio Delgado
cenário, adereços e figurinos | Stéphane Alberto
desenho de luz | António Vilar
construção de cenografia | David Paredes, Nuno Tomaz e Tiago Rodrigues
assistente de cenografia | Margarida Silva
assistente de figurinos | Joana Veloso
direção de produção | Telma Grova
assistência de produção | Inês Félix
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CITAÇÕES & REFERÊNCIAS:
*Tradução livre e adaptada a partir de Meyerhold, V. E. (2005). “Chejov” (p. 116) em El actor sobre la escena: Diccionario de práctica teatral (5.ª ed.; E. Ceballos, Ed.). México: Escenología AC.
**Tradução livre e adaptada, com supressões. Transcrita de Borny, G. (2006). “The Search for Form” (p. 75) em Interpreting Chekhov. Canberra, AU: ANU Press. Consultado em: https://doi.org/10.22459/IC.08.2006
***Tradução livre a partir de Borny, G. (2006). “The Search for Form” (p. 71) em Interpreting Chekhov. Canberra, AU: ANU Press. Consultado em: https://doi.org/10.22459/IC.08.2006
****Tradução livre e adaptada a partir de Borny, G. (2006). “Three Sisters: ‘Oh if we could only know!’” (p. 202) em Interpreting Chekhov. Canberra, AU: ANU Press. Consultado em: https://doi.org/10.22459/IC.08.2006
*****«I could not force myself to read his Three Sisters to the end – where does it all lead us to? Generally speaking our modern writers seem to have lost the idea of what drama is.» (Borny, 2006, p. 202).
Clarke, B. R. (1963). Chekhov’s chronic tuberculosis. Proceedings of the Royal Society of Medicine, 56, pp. 1023–1026. Disponível em: https://doi.org/10.1177/003591576305601136
Tchékhov, A. (2006). A Gaivota ; O tio Vânia ; Três irmãs (N. Guerra & F. Guerra, Trad.). Lisboa: Relógio D’Água.
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