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Canção Doce – Leïla Slimani (Alfaguara, 2017)

«O bebé morreu». Desde a primeira frase de Canção Doce de Leïla Slimani (Alfaguara, 2017), livro vencedor do prestigiado Gouncourt em 2016 (e apenas a segunda mulher a receber o célebre cheque de dez euros), somos confrontados com um dos piores medos da contemporaneidade. Ou melhor, com dois, um mais inconfessável do que o outro: a maternidade e a morte de um filho na primeira infância. É desse ponto que parte a história de Louise, a ama dos Massés, contratada para cuidar dos filhos de Myriam e Paul enquanto trabalham. Cedo se torna imprescindível à rotina daquele lar, inexcedível nos cuidados que dispensa às crianças, quase sobre-humana na capacidade de trabalho e perfeição com que executa cada tarefa doméstica. «Impõe os seus modos antiquados, o seu gosto pela perfeição. (…) Paul e Miryam estão felizes da vida. Paul diz-lhe, sorrindo, que ela faz lembrar a Mary Poppins.» (pg. 33) O retrato desta personagem complexa é complementado com a sua vida fora do conforto do lar luxuoso que, apesar de por si cuidado, nunca será o seu. O regresso demorado a um apartamento de condições débeis nos subúrbios, com um senhorio intrusivo e abusador, as frustrações comezinhas e desgastantes causadas pela ausência do mais básico bem estar, são algumas pinceladas de uma vida perdida, absorvida pelas existências daqueles a quem dá diariamente o melhor de si. «”A minha ama é uma fada.” É isto que Myriam diz sempre que descreve a entrada de Louise na vida da sua família. Ela só pode ser dotada de poderes mágicos para ter conseguido transformar aquele apartamento claustrofóbico, exíguo, num espaço agradável e luminoso.» (pg. 33) Os seus desejos e a sua intimidade, por detrás da eficiência silenciosa, são-nos revelados aos poucos e entrevemos uma criatura atormentada, entre o desespero e a desesperança da inalcançável vida melhor, o desejo de escapismo e a inveja, que vai crescendo, do privilégio e luxo com que convive sem nunca realmente usufruir ou aceder.

Os pais são um casal de meia idade, classe média-alta, como tantos outros: casados cedo na vida, encontram no trabalho a fonte de rendimento, mas também de felicidade e desvio da rotina caseira e da parentalidade. Myriam Charfa, advogada, «Dedica-se com uma paixão obsessiva, que acaba por dar frutos.» (pg. 40) Surge um clima de sedução e atracção mútua com Pascal, o seu chefe, que a desafia intelectualmente e não só, e as ideias inevitáveis de escapismo não tardam, com a consciência aguda de que a sua vida nunca mais seria a mesma. «Ela sempre recusara a ideia de que os filhos pudessem ser um entrave ao seu êxito, à sua liberdade. (…) Achava isso injusto, terrivelmente frustrante. Percebeu que nunca mais poderia viver sem ter a sensação de estar incompleta, de fazer mal as coisas, de sacrificar uma parte da sua vida em prol de outrém.» (pg. 43) Acaba mesmo por formular um pensamento com tanto de radical como de fantasioso «Só seremos felizes (…) quando não precisarmos mais uns dos outros. Quando pudermos viver uma vida nossa, uma vida que nos pertença, que não diga respeito aos outros. Quando formos livres.» Mal sabia o que o futuro lhe reservava. A sua inércia caseira e insegurança perante os filhos, acaba por tornar Louise ainda mais essencial. Paul é um criativo. Produtor musical bem sucedido, bon vivant, acaba por sentir uma atracção pela ama, mas não age em relação a ela. Não encara da melhor forma a parentalidade. Depois do nascimento de Mila «…a vida tornou-se uma comédia ligeiramente patética.» (pg. 117) e, pouco depois do nascimento do segundo filho Adam «sentiu-se preso numa ratoeira, sobrecarregado de obrigações. Apagou-se-lhe a chama (…) a confiança no futuro. Deixou de ter ideias malucas (…) Atenuou os seus entusiasmos. (…) Durante uns meses, Paul tornou-se imaturo, irresponsável, ridículo. Acalentou segredos e desejos de evasão. (…) A única coisa que queria era não voltar para casa, ser livre, viver mais, porque vivera tão pouco (…) e era tarde demais. As vestes de pai pareciam-lhe simultaneamente demasiado grandes e demasiado tristes.» (pg. 117/118). A rotina acaba por engoli-los e a vida de êxito revela todos os seus senãos. «A vida tornou-se uma sucessão de tarefas, de compromissos a cumprir, de reuniões a não faltar. Myriam e Paul estão assoberbados. Adoram repetir isso, como se essa exaustão fosse um sinal pronunciador de êxito. A vida deles transborda por todos os lados, há apenas espaço para o sono e nenhum para a contemplação.» (pg. 115)

Louise vai-se desmoronando ante os nossos olhos, com o peso inultrapassável do passado e os problemas familiares a fazerem mossa e a alterar a modo rigoroso como encara a vida e o trabalho. O ambiente na casa dos Massés deteriora-se e Louise alimenta fantasias quanto ao futuro dos seus empregadores que não auguram nada de bom.

Conhecendo de antemão o desfecho do livro, o leitor vai amealhando sinais que inicialmente passam despercebidos ao casal Massé, as expressões e gestos involuntários que revelam um lobo na pele de um cordeiro, que o narrador omnisciente vai despindo, por forma a forjar uma causalidade que explique o acto tresloucado de Louise. «Olham para ela e não a vêem. É uma presença íntima, mas nunca familiar.» (pg. 59)

Em destaque ao longo do livro, encontramos temáticas bem diversas do fait-divers que o inicia: o desfasamento abismal entre a importância e responsabilidade de Louise e a ausência de dignidade da sua vida para além do trabalho, a relação estranha e ambígua que se estabelece entre uma ama e uma mãe nos tempos de hoje, em que a educação dos filhos é confiada a uma estranha, a quem a mãe paga para dar amor e cuidados que o emprego a impede de dedicar à sua prole, as flutuações de poder na dialéctica ama-família, com o poder efectivo a pertencer à primeira e a consciência crescente e tóxica desse poder por parte de Louise ou o preconceito racista e xenófobo na sociedade francesa neste tipo de profissões, logo desde a fase de selecção para o emprego.

Leïla Slimani consegue habilmente conciliar diferentes cenários e códigos sociais para densificar as suas personagens, mantendo a coesão e a economia narrativa, sem sacrificar as minudências do enredo e mantendo o leitor em alerta, como se investigasse os factos ou reacções capazes de espoletar uma tragédia onde esta seria mais improvável. A marroquina criou uma obra ambiciosa e impactante, bem para além da derradeira página, não só pela crueza dos factos, mas pela ténue culpa que desperta em nós, testemunhas silenciosas e cúmplices de uma estrutura societária e familiar anquilosada em colapso iminente, que, em Canção Doce, cede pelo lado mais fraco, com efeitos devastadores.

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