Dizia um qualquer cronista da nossa praça que Portugal não é conhecido por ter uma grande tradição dramatúrgica. Estava errado, é certo; foi um dos que se dedicou a atear um incêndio que não chegou a lavrar. Mas este espectáculo esclarece de forma contundente quaisquer cépticos a esse respeito e esse incêndio começou em Guimarães e irá indubitavelmente trilhar o seu caminho. Qual é a importância do Teatro hoje? Parece uma questão aqui extemporânea, quase demasiado vasta para caber num só espectáculo. Contudo, depois de ver Catarina e a beleza de matar fascistas assume-se inevitável.
Esta produção do Teatro D. Maria II atinge um tal nível de excelência que, se há quem lhe chame manifesto, esse será um que resuma a importância do Teatro na sociedade de hoje. Pode o Teatro libertar-nos da apatia? Pode o Teatro desagrilhoar-nos o pensamento na construção de um melhor modelo de sociedade? Podemos até argumentar que estas não são uma questão ulteriores, mas que estão de facto na génese da própria concepção desta peça. Tiago Rodrigues, aqui simultaneamente dramaturgo e encenador, liberta o pensamento crítico que vezes demais temos visto limitado a uma pretensa neutralidade face aos contextos sociais que atravessamos, e instiga-nos a agir. Já toda a gente percebeu que esta peça é sobre fascistas, mais concretamente, sobre matar fascistas. Na verdade, percebemos rapidamente que, embora se possa escolher levar a expressão à letra, ela pode também ser metáfora para tantas outras coisas – calar, ridicularizar, restringir, por exemplo.
A beleza da peça está também aí, nessa escolha que cabe inteiramente ao espectador. Esse é um dos aspectos mais interessantes e mais belos deste espectáculo: o texto está brilhantemente escrito, e alcança aquela qualidade reservada ao domínio da genialidade dos que conseguem conduzir-nos o pensamento sem lhe ditar os caminhos. Tudo é interpretação, julgamento que o público vai tecendo sobre as diferentes personagens, que, à medida que vão revelando as diferentes camadas que as compõem, vão demonstrando que vivemos tempos sem consensos. Como se combate o fascismo em democracia? Confrontados com uma família que se reúne uma vez por ano para matar um fascista, esperando assim adubar a liberdade (isto já num tempo onde o poder lhes pertence, mas em que o autoritarismo – coisa curiosa – continua a ser exercido não pela repressão violenta, mas pela profunda manipulação das massas a que já hoje assistimos), conhecemos a rebelde que ousa questionar a tradição (numa interpretação absolutamente fabulosa de Sara Barros Leitão).
Quais são os limites? Até onde deve ir a tolerância? O que distingue um fascista? São interrogações que este elenco incrível (com prestações assombrosas, das quais se destacam também a de Isabel Abreu e Marco Mendonça) nos atira sem rodeios. Se primeiro, as respostas são tão naturais que chegam a ser quase festivas, motivo de celebração (tal como talvez o fossem para cada um quando entramos na sala), a partir da primeira dúvida, somos mergulhados num caleidoscópio de reflexões que não é fácil navegar.
Tudo foi simbólico neste evento: a estreia acontecer no mesmo fim-de-semana de um congresso nacional do único partido de extrema-direita em Portugal com representação parlamentar, o mesmo em que uma manifestação por ele organizada foi cercada pela “Grândola Vila Morena” a ecoar na Praça do Giraldo, e por acontecer precisamente em Guimarães, o nosso berço identitário, com um sucesso de bilheteira retumbante.
Mas depois somos confrontados com o monólogo surreal do fascista, pela voz de Romeu Costa, aqui num desempenho que só se pode considerar fenomenal. (Falamos de um personagem que não tem voz durante larga maioria do espectáculo, mas que quando começa a falar, nos deixa a todos estarrecidos: o texto inteligentíssimo, reprodução ipsis verbis do tanto que já ouvimos por aí, a fisionomia estudada e controlada ao milímetro; aqui, até um gole de água resulta numa carga dramática a que o público não conseguiu ficar indiferente.) E é precisamente esse efeito avassalador que o final da peça produz no público (não sendo despiciendo o feito de conseguir unir tão visceralmente pessoas distanciadas pelas cadeiras interditas numa sala cheia) que fica a ecoar cá dentro: o desassombro de perceber que eles já aí estão, os fascistas, e que não sabemos como os combater, mas também a esperança de perceber que ainda somos muitos dispostos a fazê-lo. No fim de tudo, acabamos a aplaudir um fascista, mas também a emergência da luta pela liberdade; isto é, até voltarmos a ouvir a voz pré-gravada a lembrar-nos de esperar a nossa vez de sair e vermos o assistente de sala a encarreirar-nos para a saída. Simbólico do início ao fim.
Foto © Pedro Macedo
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