“Construir em cena um super-homem hediondo que ninguém consiga inteiramente detestar, que nenhum espectador consiga inteiramente compreender, mas que todos os presentes reconheçam ou revejam nele a sua história: foi esse o nosso desafio.”, revela Patrícia Portela sobre a génese de Homens Hediondos, peça reposta no Teatro Carlos Alberto por tempo demasiado limitado, com base no já clássico Brief Interviews With Hideous Men (Little, Brown, 1999) de David Foster Wallace.
Começando pelo espectáculo. Quando todos elementos em cena potenciam a representação, sem se imporem ou perturbarem a atenção (desde figurinos, iluminação, adereços, som, vídeo) o ponto de partida não pode melhorar. Agora juntem a isso um Nuno Cardoso em “god mode” e temos algo antológico em mãos.
Agora um pouco de contexto e diatribes paralelas para compôr isto.
Talvez a mais profunda forma de sinceridade para um homem hediondo seja a mentira descarada. Entre o discurso honesto e ultra-exploratório, a auto-comiseração depreciativa e a comédia em doses comedidas, vai revelando a manipulação pura nos seus ritmos, objectos e objectivos e, passado o bulício, no seu triunfal desenlace. Pelo que revela da pessoa – a personagem e o actor – que o pro(fere), (ênfase no fere, latim para trazer à tona ou fazer avançar e na forma como esse movimento é sempre influenciado pela forma como o discurso é apresentado à audiência, o público no caso), poucos se dispõem e são capazes desse desiderato em formato monológico. Por outro lado, uma récita destas, por definição com pés de barro pelas seus inúmeros imponderáveis, não está ao alcance de qualquer encenador/dramaturgo ou público, exigindo um mínimo indispensável de inteligência e vulnerabilidade para suspenderem valores e crenças, para o bem do resultado final. Esta simulação de contrato social tripartido, que só termina com a “curtain call”, afortunadamente foi cumprido à risca nesta noite, vencendo assim a fatídica efemeridade a que estes pedaços de arte estão votados e que tento nestas palavras atabalhoadamente perpetuar.
Nesta altura, falar-vos-ia do génio torturado de David Foster Wallace (DFW), suicida ultra cerebral, hoje tornado misógino e certamente cancelado pela polícia dos costumes, criador das dezenas de personagens na origem do texto da peça. Mas não vou por aí. Escrito nos anos 90 e publicado no final dessa década, o livro assume a forma de entrevistas imaginárias, diálogos, monólogos e solilóquios inopinados e soltos ao nível do puro histerismo neurótico, sempre protagonizados por homens à beira de um ataque de nervos. Como se quase toda a teoria freudiana de súbito se aplicasse aos homens, tornados “case studies” de destaque.
Voltando à peça. A sacralização e superioridade moral do homem racional, desde o cartesiano e bem morto “cogito ergo sum”, são aqui ridicularizadas e expostas em todo o seu espectro de incoerências, distúrbios e manobras, olhando o interlocutor para uma reacção imediata, sem escape para qualquer dos dois.
“Consegues perceber como estou a ser honesto e aberto contigo? Eu consigo ver o julgamento nesse teu sorriso… tu já decidiste o que achas desta história mesmo antes de a ouvires.”
O riso frequente, reflexo do humor do texto, revela o desconforto diante das frequentes atrocidades morais e éticas descritas, ataques à actualizada e inclusiva censura dos renovados bons costumes, hoje canceladas sem dó nem piedade com a necessária pós-flagelação do autor em praça pública até à satisfação plena de todos os ofendidos. A ignorância e a falta de sentido de humor são a constante nesta defesa intransigente e radical da empatia que hoje grassa em todos os meios artísticos, conceito com que a peça joga eficazmente e com ironia, servindo tanto o idiota protagonista na sua argumentação fechada como o seu censor (nós, o público, com a nossa mundividência). Como em quase tudo na vida, a perspectiva é raínha e senhora.
É desta dialéctica funambular, de risco de vida permanente, que o espectáculo e a actuação antológica do experiente Nuno Cardoso se alimentam. Ao original wallaciano, já deveras completo e ambíguo, Cardoso e Portela acrescentam uma sensibilidade e um referencial mais actualizados (os anos 90 já são de outra vida) e a bem vinda e constante quebra da quarta parede.
A virtude suprema deste super-homem hediondo que se sacrifica diante de nós, no altar da crítica silenciosa, sentados em plano elevado na nossa bancada, quais juízes em plena audiência, é reforçar a nossa virtude por antagonismo, em dúvida constante sobre os momentos de riso aberto ou discreto ou sequer se a piada somos nós, em dilemas interiores inconfessados e conclusões abafadas pela tranquilidade exterior do bom senso do homem médio e a boa moral. Porque é a transgressão, o excesso, o inconfessável, o escatológico que aqui nos é relembrado e descrito. Essa liberdade irresponsável e libertina de falhar, dizer a palavra errada no local mais terrível, que nos remete à nossa finitude e às infinitas possibilidades de desastre iminente que nos acompanham. O bobo diante de nós parece dizer-nos (aliás diz-nos com frequência): olha-me nos olhos e diz-me que não conheces ninguém assim. Desafio-te. Mesquinho, egótico, desligado, brutal. Constantemente não. Só às vezes.
Talvez seja esta a perfeita peça para o natal em 2024. A t(r)emida época de reencontro por parcas horas, em que se jogam tabus, ensejos e irritações guardadas durante 365 dias à volta da mesma mesa, regados pelas melhoras drogas legais disponíveis, para acompanhar a prática dolente e reiterada dos pecados sazonais: a gula, a vaidade e, porque não, a luxúria. Confrontacional claro. Lixar primeiro para não ser lixado depois, como uma intervenção terapêutica forçada. But i digress…
DFW era homem hediondo, sabemos hoje por múltiplos testemunhos. (sei o que prometi, mas é inevitável). O bom rebelde do Midwest, com pais professores, que se deixava retratar com a badana vermelha na cabeça à Andre Agasi, que oferecia aos seus alunos de mestrado bestsellers para analisarem e perderem maneirismos pseudo-intelectuais, que fez um discurso de final de curso (citado no início da peça e que podem ouvir com uma bela animação AQUI) sobre peixes e água e empatia diante do individualismo, cinismo, ironia e da voracidade capitalista, era o mesmo que frequentava reuniões de viciados para copiar diálogos íntimos na íntegra para os seus livros (Infinite Jest é feito de dezenas deles) e perseguia obsessivamente interesses amorosos, mesmo depois do final das relações, com cartas, telefonemas fora de horas, intimidação, violência e aparições sinistras a horas inconvenientes.
Mas nada disto prejudica a profundidade e extrema destreza dos seus textos onde, com humor, encara temas contemporâneos como o tédio e o divertimento a todo o custo, com incomum gentileza diante da fraqueza, juntando alegoria e subtileza, mas também brutal frontalidade diante dos grandes anseios como a morte, o vazio e a liberdade que sobra diante da impossibilidade de uma solidão total. Falo dele como paradigma do homem super-racional e multicéfalo que segura este espectáculo, retratado no imediatismo parcialmente improvisado, perfeito nas suas virtudes subjectivamente percepcionadas mas um extraterrestre/freak pelos padrões da maioria na selva do quotidiano.
Ninguém o consegue odiar mas, mesmo contrário às mundividências individuais, é reconhecido como uma possibilidade realista e verosimil de ser humano, talvez até algum conhecido nosso, talvez o próprio espectador incauto, perturbado no seu sossego regado a certezas que, bem analisadas, mais não são que bocejos e iterações das redes sociais tidas por razoáveis ou até, pasme-se, reais.
O teatro como “pacifier” (inglês perfeito para a chucha dos bebés), que cala e adormece, hoje prevalente como mera câmara de eco das preocupações vigentes, limita-se a oferecer respostas à medida do que finge perguntar. É a dramaturgia confrontacional que nos acorda da percepção definitiva e absurda de sermos o centro do Mundo. Quanto mais profundo e incondicional o mergulho nessas transgressões, mais eficaz a purificação final. Porque necessariamente limitada no espaço e tempo da récita, não há nada a perder. É win win.
#somostodosvampiros como o descrito em “Vampire” pela ninfeta Olivia Rodrigo no desenlace. Na menor interacção, há interesses subliminares e o estabelecimento de uma relação de poder. A diferença entre o “normal” e o reprovável é multíplice: alguns ignoram a (sua) verdade, outros abraçam tudo e tornam-se hediondos, outros fazem disso arte e sustento, fingindo diante de um público pagante para nosso deleite. O segredo está na habilidade de jogar o jogo social. Afortunadamente, a consciência de si não significa o uso dessa liberdade/habilidade para o Bem. O novo pós pós moderno Rebelde pode ser Mau, algo deveras proveitoso, como pude testemunhar.
Um triunfo.
Bem hajam todos os envolvidos.
FICHA TÉCNICA
A partir de Breves Entrevistas com Homens Hediondos de David Foster Wallace
encenação, tradução, dramaturgia, vídeo, figurinos e cenografia Patrícia Portela
interpretação Nuno Cardoso
desenho de luz Cárin Geada desenho de som Miguel Abras pós-produção vídeo Irmã Lúcia, a partir de imagens de Leonardo Simões
assistente de encenação Pedro Nunes participação especial no vídeo Eduardo André Abreu produção Teatro Nacional São João
dur. aprox. 1:45 M/16 anos
Foto © João Tuna
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