Nora Helmer, a mais recente criação do Teatro Aberto, é um espectáculo de cinema e teatro – exactamente por esta ordem –, que coloca em confronto o Passado e o Futuro da protagonista. João Lourenço e Vera San Payo de Lemos juntam-se para criar um diálogo entre Casa de Bonecas (1879) de Henrik Ibsen – peça de drama burguês, precursora do Teatro Moderno – e Casa de Bonecas, 2ª Parte (2017) de Lucas Hnath – “peça-resposta“ que retoma a acção dramática passados 15 anos e formaliza um desfecho para as personagens.
A proposta da encenação é audaciosa: as duas peças são apresentadas em díptico, no espaço de 1 hora e 50 minutos. O espectáculo consegue recapitular o Passado, condensando a peça ibseniana num filme a preto e branco (com roupagem dos anos 50), e presentificar o Futuro, com a supressão da tela e a [continuação da] representação no palco do texto de Hnath pelos actores, Carolina Picoito Pinto (Ema), Cleia Almeida (Nora), Patrícia André (Ana Maria) e Renato Godinho (Torvald), ao som da música de Ernesto Rodrigues. Em contrapartida, a tarefa ingrata de comprimir o texto de Ibsen num filme de sensivelmente 60 minutos, faz com que os efeitos dramáticos não se produzam plenamente. Em certos momentos a acção assemelha-se à telenovela (devido à montagem e à dissonância natural da transposição directa do texto teatral para um meio audiovisual) e alguns significantes da peça perdem significado e/ou impacto dramático, pois a necessidade de compressão e a montagem imprimem tal rapidez ao aparecimento dos signos teatrais, que não lhes concedem tempo de respiração e maturação de significado.
A acção de Casa de Bonecas (1879) conclui com Nora, de mala de viagem na mão, a entregar as chaves de casa, a aliança de casamento e a sair pela porta, deixando para trás o marido e os filhos. O bater da porta simbolizava o ponto final ao casamento de fachada de oito anos com Torvald. Uma saída de cena histórica, já que nenhuma personagem feminina do teatro dramático tivera até ali a ousadia de fazer algo parecido.
HELMER: […] Como podes trair os teus deveres mais sagrados?
NORA: Quais são os meus deveres mais sagrados?
HELMER: […] Não serão os teus deveres para com o teu marido e os teus filhos?
NORA: Eu tenho outros deveres tão sagrados quanto esses.
HELMER: […] Que deveres?
NORA: Os deveres para comigo mesma.
HELMER: Tu és, em primeiro lugar, esposa e mãe.
NORA: Já não acredito nisso. Em primeiro lugar, eu sou um ser humano, assim como tu… Ou, pelo menos, vou fazer um esforço para ser. Sei que a maioria te vai dar razão, Torvald. E sei que essas coisas estão escritas nos livros. Mas eu já não posso satisfazer-me com o que a maioria diz e com o que está escrito nos livros. Eu tenho de pensar nas coisas por mim mesma e tentar compreendê-las.
[…]
HELMER: E lúcida e segura, tu abandonas o teu marido e os teus filhos?
NORA: É o que vou fazer.
HELMER: Então, só há uma explicação. […] Já não me amas.
NORA: Sim, é exactamente isso. […] Eu já não te amo.
À época de estreia, a peça gerou controversa. As críticas dividiam-se. Em alguns países europeus, a peça foi representada com um final alternativo: numa última tentativa para a demover, Torvald agarra Nora pelo braço e obriga-a a ver os filhos, que dormem pacificamente no quarto. Essa visão “ternurenta” é o suficiente para a convencer a ficar. (*) Ibsen inspirou-se na história verídica de Laura Kieler, uma escritora norueguesa. A colaboração literária entre os dois começou no final da década de 60 do século XIX quando Laura escreveu “As filhas de Brand” (1869), romance que continuava o drama ibseniano “Brand” (1866) e inventava um final redentor para o protagonista. Poucos anos depois, quando o seu marido adoeceu de tuberculose, Laura pediu um empréstimo para financiar a viagem a Itália recomendada pelos médicos e endividou-se. Ao ver que o dinheiro da venda dos seus livros não chegava para saldar a dívida, falsificou um cheque. A fraude é descoberta, o marido insurge-se e força o divórcio, Laura é afastada dos filhos e Ibsen percebe o que muitos escritores compreendem: há dramas reais que são grandes oportunidades de ficção. (**)
As semelhanças entre a vida ficcional de Nora e a vida de real de Laura não passaram despercebidas ao dramaturgo americano, Lucas Hnath. Também em “Casa de Bonecas, 2ª Parte”, a ficção alude ao real: a Nora que rompe novamente pela porta tornou-se escritora e é uma defensora acesa da causa feminista. Se na vida real, Laura consertou a relação com o marido, já na vida ficcional, Nora orgulha-se de ter arrancado o apelido de casada e quer oficializar o divórcio. E se na vida real, Henrik Ibsen se projectou internacionalmente com a publicação de Casa de Bonecas, esta nova Nora também soube capitalizar o matrimónio e convertê-lo num êxito literário. Se na vida real, Laura considerou imperdoável a traição de Ibsen à sua privacidade (e atacou-o ferozmente em várias obras), o Torvald de Hnath lê excertos do livro de Nora em voz alta e confronta-a com a caricatura que ela lhe faz.
A versão americana idealizada por Hnath desenrola-se em 5 quadros, que recebem de título o nome de cada personagem: Nora, Torvald, Ana Maria, Ema e Nora e Torvald. Em cada quadro, assiste-se a um diálogo isolado entre Nora e a personagem que lhe dá título, numa luta aferrada para arranjar aliados que convençam Torvald a assinar os papéis do divórcio.
Embora o espectáculo “Nora Helmer” tenha mais tempo de cinema do que de teatro, é um espectáculo importante do ponto de vista temático, afinado com as crises sociais actuais. Principalmente em Portugal, onde a violência doméstica só há 20 anos se tornou como crime público e, em pleno 2025, ainda é preciso criar e assinar petições a pedir o mesmo para os crimes de violação das mulheres.
FICHA TÉCNICA
dramaturgia Vera San Payo de Lemos encenação e cenário João Lourenço filme João Lourenço, Nuno Neves figurinos Marisa Fernandes luz Anabela Gaspar música Ernesto Rodrigues com Carolina Picoito Pinto, Cleia Almeida, Patrícia André, Renato Godinho, Benedita Pereira, Filipe Vargas, Miguel Damião, Rita Correia
fotografias de ensaio © Filipe Figueiredo
REFERÊNCIAS:
Ibsen, H. (2008). “Casa de Bonecas” (1879). Em H. Ibsen, Peças escolhidas (K. E. Schollhammer, & A. Freire-Filho, Trads., Vol. 3, pp. 213-303). Lisboa: Edições Cotovia. O excerto de diálogo citado contém supressões e situa-se entre as páginas 298-300.
*Fonte: Leonard, S. R. (Setembro de 2018). “The creation and impact of A Doll’s House”. The Berkeley Rep Magazine, Vol. 51, pp. 22-25. Consultado em:
**Fontes: Mortensen, B. (2023). Laura Kieler. Obtido em 20 de Abril de 2025, de “Enciclopédia Biográfica das Mulheres Dinamarquesas”: https://kvindebiografiskleksikon.lex.dk/Laura_Kieler & Zarevich, E. (29 de Setembro de 2023). Laura Kieler: Uma Vida Explorada. Obtido em Abril de 2025, de JSTOR Daily: https://daily.jstor.org/laura-kieler-a-life-exploited/
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