home Antologia, LITERATURA O Espectro dos Populismos (Tinta da China, 2018)

O Espectro dos Populismos (Tinta da China, 2018)

O decalque da famosa formulação de Marx sobre um espectro que percorre a Europa apresenta-se-nos, no título deste livro, com uma diferença essencial em relação à expressão que lhe dá origem: já não é o comunismo, no singular, são os populismos, no plural. É esse o desiderato principal do volume O Espectro dos Populismos publicado pela Tinta da China: definir, desconstruir, refinar um conceito utilizado no mundo mediático sem diferenciação, abarcando, por isso, tudo e nada. Ao longo da última década, já todos designamos alguém de populista, sempre em sentido pejorativo, mas aqueles que assim assinalamos estão a chegar ao poder de forma rápida em várias zonas do globo. É preciso perceber, portanto, o que é o populismo, de que forma se dissemina, qual o seu trajeto histórico, qual a sua novidade, que desafios convoca na encruzilhada atual entre a esquerda e a direita políticas, ambas reféns desta forma cada vez mais presente no discurso político internacional. A coordenação é de Cecília Honório, autora também de um dos oito ensaios políticos e historiográficos constantes do livro, junto com Fernando Rosas, Luís Trindade, Manuel Loff, José Manuel Sobral, José Manuel Pureza, João Mineiro e Francisco Louçã. No final há uma entrevista com Boaventura de Sousa Santos.

A importância de um livro como este nos tempos que correm é evidente: todos aqueles que consideram a via populista perigosa para os destinos da política mundial precisam de munir-se, em primeiro lugar, de argumentos. Isto implica, em segundo lugar, um posicionamento político. O que leva, em terceiro lugar, à necessidade de conhecimentos concretos sobre o contexto histórico da viragem do século XX para o XXI. Este livro é um ótimo ponto de partida para percorrermos estes três pontos. Antes de tudo, o argumento principal, como nota Cecília Honório, marcando o tom para o resto do livro: “Classificar de populista todo o discurso que apele ao «povo» só serve para o encontrar em todos os cantos do espaço político moderno” (p.29). Este “povo vago, sociológica e economicamente indefinível” (p.33) está no centro dos populismos atuais, em grande parte ancorados num nacionalismo que se julgava coisa do passado, já que se autojustifica através de uma pertença coletiva a uma identidade étnico-nacional e religiosa (nós, os europeus, de matriz cristã) e, ao mesmo tempo, civilizacional (nós, os europeus, os defensores das liberdades individuais), rejeitando, por exemplo, a imigração islâmica de forma a proteger avanços dos direitos humanos decorrentes de uma visão iluminista da Europa. Aqui entrariam, como detalha José Manuel Pureza, os “direitos de autonomia sexual e de igualdade de género como um património identitário consolidado” e a “concomitante construção da periferia imigrante (…) como exterior e inimiga desse património” (p.160). Esta política do medo, diretamente relacionada com a paranoia securitária, terá os imigrantes como grande combustível de um nacionalismo “assente no trauma e no ressentimento”, como nota José Manuel Sobral no seu ensaio (p. 127). Mas de quem é este ressentimento? A resposta rápida: da “classe trabalhadora urbana do setor privado na Europa ocidental” (p. 33), uma classe “nativa”, obviamente inexistente enquanto coletivo sociológico, mas que atrai uma parte da população, perante as condições propícias, a expressarem pelo voto uma luta entre “os bons” e “os maus”, por sua vez estimulada pela “hipermediatização da política” (idem).

As redes sociais, cada vez mais uma fonte incontornável de informação para os chamados órgãos de comunicação tradicionais, são aqui um conceito-chave para entender a propagação dos populismos. João Mineiro, num ensaio extremamente pertinente sobre “o tempo, as redes e o espetáculo do populismo”, chama à indiferença generalizada pela veracidade das fontes consultadas “agnosticismo metafísico”, que estabelece com a “informação uma relação de permanente desconfiança” (p.177). Mineiro identifica no jornalismo atual a explicação para a proliferação da pós-verdade. Este estaria, segundo Mineiro, pejado de “editocratas”, que “monopolizam o espaço de opinião e são omnipresentes e omniscientes. Têm ideias, teses e «pontos de vista» sobre tudo, sobre todos, a todo o momento. Tão certo como o sol se levantar todas as manhãs é eles ocuparem todos os canais mediáticos para reproduzirem um arsenal de banalidades” (p.179). Por outro lado, as redes sociais não seriam forçosamente prejudiciais, tal como os exemplos da Primavera Árabe e dos movimentos como o 15-M em Espanha ou mesmo o espaço online português Ganhem Vergonha podem demonstrar.

Fernando Rosas, Luís Trindade e Manuel Loff assinam ensaios mais especificamente relacionados com o contexto português, os primeiros dois sobre o salazarismo, Loff sobre o que designa de “antipopulismo reacionário em Portugal”. Especialmente interessante é a proposta de Trindade sobre o salazarismo como cultura política que precedeu, e portanto, naturalmente, sucedeu ao tempo de vigência do Estado Novo, assim como a chamada de atenção para o aspeto, segundo o autor, pouco contemplado na história do Estado Novo que é a “coincidência entre [esse] período (…) e as primeiras cinco décadas de transmissão radiofónica, as primeiras quatro décadas de cinema falado e a primeira década e meia de televisão” (p.83).

O Espectro dos Populismos é um manual imprescindível para nos situarmos perante a naturalização deste fenómeno neste primeiro quartel de século. E esta naturalização deve preocupar tanto a esquerda como a direita, como conclui Francisco Louçã: “(…) o populismo é, à esquerda, uma estratégia discursiva sem estratégia política, ou uma promessa de vencer um conflito sem conflito, ao passo que à direita representa hoje uma tensão entre o neoliberalismo e a democracia, favorecendo a emergência de soluções autoritárias” (p.232).

O livro será apresentado por Cecília Honório e João Mineiro no ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa no dia 6 de novembro, às 17 horas.

Por defeito profissional, Luis Pimenta Lopes escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.

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