Três corpos sujos, gastos e esgotados tentam puxar uma densa estrutura metálica, que simboliza uma grande pedra no deserto, à qual estão agrilhoados e que devem fazer chegar a um outro lugar. Três corpos puxam, três corpos falham. A pedra não mexe e a função física e social dos três escravos é temporariamente interrompida. Que fazer? Estamos em Os Inimigos da Liberdade – Peça para três escravos, no Teatro da Trindade, em Lisboa, com Cristóvão Campos, João Craveiro e João Vicente a interpretarem com segurança e arrojo o texto de Manuel Pureza, vencedor do Prémio Miguel Rovisco, edição 2018/2019, atribuído a novos textos teatrais.
O texto tem, aliás, uma importância decisiva na peça, condicionado pelas escolhas cénicas minimalistas do autor e encenador: jogo de luzes discreto, baixo aparato sonoro, poucos movimentos de cena, quase ausência de objetos e simbologias. Tudo centrado, portanto, nos corpos e no texto, num esforço de mimetizar a própria ideia de deserto inóspito, onde os corpos ganham centralidade perante o vazio.
O tempo vai passando por eles, guiado por uma campainha que vai indicado saltos cronológicos. Mas o tempo passa no deserto? Como pode passar o tempo, quando as suas fronteiras e imaginários se desmembram? Quando já não se sabe quem se é, qual a razão por que se está ali, que caminho realmente se fez ontem, para onde ir? Se passado não há e futuro parece não haver, o tempo presentificado é uma agrura. Por isso a pedra se torna tão importante e decisiva: ao mesmo tempo que separa os três corpos da sua existência, une-os na caminhada a fazer.
Joga-se neste paradoxo permanente, entre o que os une e os separa, refletido nas correntes, que tanto os punem como lhes dão sentido, tanto os aprisionam como são aparentemente fundamentais para que a sua função não deixe de ser cumprida. Em momento algum essas contradições ficam tão claras como quando, subitamente, as correntes desaparecem e os corpos a elas continuam presos.
Mas a questão de fundo persiste, tal como é sugerida na folha de sala: pode alguém ser livre no deserto? É este o labirinto crucial da encenação. Aparentemente, tudo sugere uma resposta pela negativa. Às personagens foge o tempo da sua própria história, sendo o seu presente uma espécie de fantasmagoria – bem patente nos seus sonhos e estados de delírio. Além disso, o seu próprio destino, com o qual concluirei este texto, indicia também que poucas saídas sobrarão para cada um dos três escravos. Mas e se fizéssemos a pergunta em sentido inverso, isto é, será possível não ser livre no deserto? Na verdade, se pensarmos nos diálogos que vão preenchendo a peça, com o seu clímax no desaparecimento das correntes, a pergunta central das personagens torna-se apenas uma: “Como é isso de ser livre?”. Ora essa pergunta é, em si mesma, uma resposta: só quem é livre se pode questionar sobre a sua própria liberdade. A pergunta é performática pelo simples facto de ser enunciada.
Por isso, nesse questionamento partilhado entre as personagens, há já política a acontecer, isto é, há liberdade, como diria Hannah Arendt. Dessa procura pelos sentidos da liberdade, podem advir atitudes muito distintas: rebeldia ou resignação, divergência ou apatia, ordem ou conflito, obediência ou subversão. Só que nesta peça, os campos de possibilidade são bem mais circunscritos. Desaparecidas as correntes – num ato mágico estranho, como que por intervenção divina – antecipa-se, enfim, que uma das personagens fugirá e acabará morta, outra tentará libertar outros e acabará perdida; e a terceira ficará junto à pedra, a anunciar esta penosa sentença. Quais os labirintos da saída?
Neste Os Inimigos da Liberdade, a esperança dos escravos afunda-se logo que nasce. Não se chega, portanto, a concretizar qualquer ato fundador, qualquer princípio de comando e de começo, aquilo a que os gregos chamavam de archein, bem antes da palavra política se generalizar. Em suma, omite-se, consciente ou tacitamente, um pormenor decisivo nesta história: todos os desertos têm um oásis. E os oásis não são lugares para descompensar. São sim, voltando a Arendt, fontes de vida que nos permitem viver no deserto, sem com ele nos reconciliarmos. Depois de libertadas as correntes, um dos personagens diz que o que realmente lhe apetecia era partir alguma coisa. Enfim, poderia ter sido o começo de algo instituinte. Terá ou não sido? Nunca saberemos, porque a personagem desaparece, deserto afora, e sobre o deserto poucas certezas poderemos ter.
Ficha Técnica
Texto e encenação: Manuel Pureza
Com: Cristóvão Campos, João Craveiro e João Vicente
Cenografia: André Amoedo e Tomás Schiappa
Desenho de Luz: João Cachulo
Sonoplastia: João Cruz
Figurinos: Mia Lourenço
Produção: Teatro da Trindade INATEL
Foto © Filipe Ferreira
Por defeito profissional, o João Mineiro escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.
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