home Antologia, LITERATURA Na Terra dos Outros – Manuel Abrantes (Cª das Letras, 2024)

Na Terra dos Outros – Manuel Abrantes (Cª das Letras, 2024)

Ser na terra dos outros. Ser imiscível. Ser de fora em nós mesmos. Tentar o caminho da solidão à empatia. Eis os pontos cardeais de Na Terra dos Outros, obra de estreia do sociólogo Manuel Abrantes.

Chamava-se Maria do Carmo Gouveia. Era pequena, mesmo para os onze anos que contava de idade.” (p. 12)

Nascera para ser uma criada de servir. Não porque fosse esse o seu sonho, mas porque era essa a sua condição. Era a quarta de sete filhos. O milagre vivo entre dois mortos. Mas, naquele (neste) país, milagres só em Fátima; para os pobres ficava só o pão que o diabo amassou.  Com ela partimos também, sentados no banco de trás do automóvel de chapa azul dos Lemos de Almeida, para uma Lisboa de persianas fechadas e sussurros temidos, que só nas ruas, mais tarde, ousará a liberdade. Um país em andaimes e de homens perdidos, analfabetos, feridos, com medo, zangados.

Era uma rapariga que partia.” (p. 13) Será uma mulher a partir. “Tantas vezes fugira sem saber de que fugia.” (p. 282) E a vida passou por ela: Guerra Colonial, 25 de Abril, Sá Carneiro, Roterdão, Expo 98… “Sorte têm as raparigas de ir, que Deus as proteja e não as mande de volta.” (p. 17)

Não, não seria uma criada. Empregada, sim, que os tempos tinham mudado. E o texto abre-se aos seus pensamentos. Procura o seu lugar no mundo do(s) Outro(s): os patrões, o marido, os filhos, o irmão. Encontra na fuga, na porta aberta, a saída possível para a sua independência. Uma vida em movimento. “Tantas vezes se descobrira impelida de trás para diante, sem saber como opor resistência.” (p. 282) Como se estivesse na bicicleta do irmão mais velho. Aquela que nunca esquecera, promessa de um equilíbrio breve, de ter nas mãos o comando da vida.

Manuel Abrantes conta-nos a grande história das vidas pequenas. Mostra-nos o século XX de Portugal e faz-nos compreender o século XXI. A protagonista, alheada dos acontecimentos à sua volta, inculta, preconceituosa, reage mais do que age, improvisa mais do que planeia. É o produto de um meio desfavorecido, de onde tenta sair com trabalho e dor. É a história de milhares de mulheres que viveram a vida dos outros. É a história de uma mulher que, com todas as suas fragilidades, tenta dizer não.

[C]rescemos cedo demais, aprendemos tarde demais…” (p. 283)

Não será sempre assim a vida?

Mais literatura AQUI

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *