Timão de Atenas, de William Shakespeare, conta-nos como se constrói um misantropo. Timão adora organizar banquetes para os amigos, oferecer-lhes presentes, patrocinar as suas incursões profissionais, relacionais e artísticas. É mecenas de poetas, políticos, pintores, filósofos, que têm toda a disponibilidade para o ouvir, louvar, venerar. De forma a manter a dinâmica da amizade generosa, Timão gasta o que tem e o que não tem, endividando-se e pedindo empréstimos aos próprios amigos se necessário, para lhes poder satisfazer a amizade baseada na expectativa da reciprocidade. Tanto Apemanto, o filósofo que observa a todo o tempo o buraco em que se enfia a sociedade ateniense que rodeia Timão, como Flávio, seu humilde e cauteloso serviçal, o tentam fazer ver a farsa em que se move, sem sucesso. No momento em que as dívidas lhe são cobradas e precisa que esses amigos lhe deem a mão, Timão vê-se abandonado à fúria dos usurários, escutando uma a uma as declarações de indisponibilidade daqueles que anteriormente se lhe juntavam na farra. Perante as sucessivas traições, Timão isola-se numa floresta fora de Atenas, de onde avista a cidade pejada de hipocrisia social, mentira e futilidade. Após a peripécia que lhe dá a ver a verdade, torna-se um homem irascível, descrente, odioso de todos os que o rodeiam, tanto os que o desiludiram como os que lhe demonstraram ser-lhe leais, como o general Alcibíades, que por ele estaria disposto a invadir Atenas e que, no final, lê o epitáfio que Timão escrevera para si próprio, renunciando à sociedade, “um homem que todos os homens odiaram”.
Em entrevista, Nuno Cardoso informa que esta peça inaugura um conjunto de quatro encenações, respetivamente votadas aos temas “dívidas, dúvidas, mentiras e revoluções”. É certo que não haverá palavra que tenha sido tão exaustivamente repetida desde 2011 como “dívida”, ano em que a crise económica se instalou nos bolsos e no discurso político e sociológico. Timão de Atenas mantém o interesse que Nuno Cardoso tem demonstrado na última década pelo tratamento das outras crises que aquela que é económica nos chama a pensar. Para isso, remete os clássicos para o mundo em que estamos imersos, com vários objetos que materializam essa imersão enquanto adereço cénico. Lembramo-nos por exemplo da autoestrada para Viena em Medida por Medida (2012), também de Shakespeare, ou dos carrinhos de compras em A Visita da Velha Senhora (2013), de Dürrenmatt.
Em Timão de Atenas, a ação decorre num WC de uma discoteca ou de um local de trabalho, sintomática da vida em “happy hour” em que nos encontramos de quinta-feira a domingo, de forma a fugir do inferno da exploração laboral, como refere o encenador na mesma entrevista. Espaço de fuga, este não-lugar é perfeito para demonstrar as relações desonestas de Timão e Companhia, que, em vez de banquetes majestáticos, passam o tempo em movidas noturnas, snifando cocaína, envolvendo-se em orgias, noites intermináveis de sexo, comida, risos, champanhe, doces, prostitutas, música techno, vestidos comme il faut, com glamour ou em casual chic. Flávio, o mordomo deste Gatsby do século XXI, e o desmancha-prazeres Apemanto, portador da verdade em fato de treino, observam connosco a folia cacofónica.
Já após o intervalo que marca a transformação de Timão num misantropo, Atenas é o aquário, o shopping, a área comercial, uma montra em saldos que Timão, agora o indigente, observa desde a rua. Na peça original este encontra-se recolhido numa cave na floresta, onde acaba por encontrar uma mina de ouro com que conseguirá financiar o propósito de Alcibíades de destruir Atenas. Em Nuno Cardoso, temos uma caixa multibanco de rua, que nos ordena e ordena “retire o seu dinheiro”, uma voz do além financeiro que convida a dívida e mais dívida, para gáudio do leque de personagens que até ao final dançam e dançam no estado ébrio que é a normalidade.
Os puristas vão detestar, embora suspeitemos que Nuno Cardoso já há muito não deva ser especialmente apreciado por eles. É verdade que a primeira parte – que culmina na dantesca cena em que Timão enche de lama os traidores, o cenário, o mundo e termina nu enfiado na panela (literal) onde se meteu – pretende de tal forma exacerbar o estado de inconsciência desse modus vivendi atual, que o texto se dilui no barulho das luzes. Exceção feita sobretudo na bem conseguida parte de teor mais claramente tragicómico, tão comum no dramaturgo inglês, da cobrança de dívidas dos senhores de fraque que arrancam as peças de roupa de Flávio – uma a uma, ao sabor de cada dívida cobrada –, enquanto este pede ajuda aos vários “amigos” de Timão. Pode, até aqui, parecer tudo excessivamente ruidoso, mas a segunda parte, em tom misantrópico, desacelera o ritmo, e o fôlego extraordinário que Miguel Loureiro dá à personagem de Timão ganha aqui o destaque devido.
É, sem dúvida, de Miguel Loureiro esta peça, e do coração, corpo e tripas que deixa em palco enquanto Timão, mas nunca é demais destacar a impressionante visceralidade do trabalho de todos os atores da Ao Cabo Teatro, sobretudo pela precariedade económica e laboral que os próprios sentem na pele, como Nuno Cardoso faz questão de deixar claro no folheto do espetáculo. É com a mesma inquietação que nos provoca cada encenação sua que esperamos pelas restantes três partes da tetralogia aqui iniciada.
Fotografia © José Caldeira
Por defeito profissional, Luis Pimenta Lopes escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.
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