home Didascálias, TEATRO Catarina e a Beleza de Matar Fascistas – CCVF, 20/09/2020

Catarina e a Beleza de Matar Fascistas – CCVF, 20/09/2020

No mesmo fim de semana em que os fascistas que nos tocaram em destino se reuniram em Évora, território tradicionalmente antifascista, Tiago Rodrigues estreia em Guimarães –berço da nação – Catarina e a Beleza de Matar Fascistas uma magnífica produção do Teatro Nacional D. Maria II sobre uma família cujo móbil político é matá-los. A coincidência demonstra que é nas margens que tanto a cobra como a resistência a ela mais força têm para crescer. Margens económicas, políticas, geográficas. Faz sentido, portanto, começar por (re)conquistá-las. Inadvertidamente, os dois acontecimentos axialmente opostos interligam-se como retrato do presente.
Que Farei Quando Tudo Arde seria um título alternativo a este Catarina e a Beleza de Matar Fascistas. Ou, se quisermos ser mais modernos, Mãe Coragem e Seus Filhos, pois é da epopeia política de uma família em tempos difíceis que se trata, e Brecht – voz-fetiche do antifascismo – é citado muitas vezes, não inconscientemente de forma paródica. Tal como o famoso paradoxo de Karl Popper, tão em voga no que a debates sobre a tolerância diz respeito, que Catarina-filha tão razoavelmente desconstrói, resistindo à tirania dos seus familiares antifascistas, mas assim destruindo-se. É Catarina-Hamlet, e dela o nosso dilema.
Catarina Eufémia, em protesto por dignas condições de trabalho, é assassinada em Baleizão pela polícia do Estado Novo em 1954. A matriarca desta família – amiga da mártir – mata o próprio marido por não ter impedido que o crime acontecesse. Redige uma epístola familiar que deve ser respeitada geração após geração: todos os anos, um Catarina da família, pois todos o são, matará um fascista na casa da aldeia que detêm perto do local do assassinato de Catarina Eufémia. Cada um será enterrado debaixo de um chaparro de cuja cortiça não se fará negócio. Até que, em 2028, com o governo fascista já no poder em Portugal, Catarina-filha decide perorar sobre a justeza do mandamento “fazer o mal para que triunfe o bem”. O fascista que lhe tocou já foi raptado, encontra-se preso na casa da família, a sua morte depende do momento de glória de Catarina-filha, mas ela hesita. É a voz da razão, da tolerância, da moderação, do debate e dos direitos humanos. O espetáculo gravita ao redor da grande e definitiva questão: sobrevivem ou morrem estes valores, se for plantado este chaparro?
Todos Somos Catarina, acredita triunfantemente o público ao entrar, com o mote ternamente cosido na consciência, tal como bordada a divisa Não Passarão em letra de escola primária na toalha de mesa da família.
No entanto, Tiago Rodrigues exporta-nos desconfortavelmente para lá da rede social que é hoje a vida e a política, uma amálgama perigosa cujo sumo é o fascismo, extraído dos ovinhos que vai chocando, e que em 2028, como profetiza a peça, chega ao poder. Assola-nos Peter Handke e a ironia do seu infame Insulto ao Público, em 1966. Num tom de rebeldia que explodiria em 1968, o mais recente Prémio Nobel da Literatura pretendia voltar o olhar do público para o teatro sem distanciamentos burgueses e entediados, nem aprofundamentos épico-didáticos à Brecht, colonizados por objetivos políticos que, nos anos 60, já se revelavam anacrónicos. Quatro homens em palco terminavam o espetáculo enumerando insultos que dirigiam desavergonhadamente ao público.
Em 2020, face à desavergonhada exibição do novo fascismo, impõe-se um tipo de insulto ao público que seja audível no meio do ruído suicida das opiniões convictas. E para tal basta um só homem – o teatro transforma-se no atual parlamento. Ao abandonar a sala, a audiência deste Catarina e a Beleza de Matar Fascistas carrega essa beleza no estômago, atropelado pelo último ato – chamemos-lhe assim –, durante o qual emerge a tentação de executar a ordem que alguém do público, em incontinência moral, grita durante a inflamada cena: DEEM-LHE UM TIRO, PÁ! Reação mais que expectável a esses vinte minutos finais de um exímio ataque que nos instiga a insultar de volta. Uma cilada inesperada, um esbater de fronteiras entre a cena e o público, a representação e a vida, o teatro e a política. Aplaudir após a última fala é aplaudir o fascista. É o que andamos a fazer – a morder o isco.


Cenas como as do dilema apresentado por Catarina-tio (António Fonseca) à sobrinha sobre a mesa, da dissensão ideológica entre Catarina-mãe e Catarina-filha (Isabel Abreu e Sara Barros Leitão), e do insuportável depoimento do fascista (Romeu Costa, a quem desejamos que saia intacto – física e psicologicamente – do périplo de espetáculos por vir), dão conta da propriedade e competência de Tiago Rodrigues para tratar dramaturgicamente as questões que importam quando tudo arde.
Ao meu lado, uma jovem espectadora não resiste à armadilha final, e grita um contundente FASCISTA! Outras pessoas na audiência clamam as suas promessas e vinganças. É teatro para desajustar as entranhas, é sobre a beleza de ressuscitar o adormecimento torpe de que andamos reféns. Recordo em particular e não por acaso: ESTAMOS AQUI PARA TE IMPEDIR! Ide e gritai. Os irrepreensíveis atores esperam ouvir o vosso insulto. Mas é cá fora que ele terá efeito.

Ficha Técnica

Texto e encenação Tiago Rodrigues
Com António Fonseca, Beatriz Maia, Isabel Abreu, Marco Mendonça, Pedro Gil, Romeu Costa, Rui M. Silva, Sara Barros Leitão
Cenografia F. Ribeiro
Figurinos José António Tenente
Desenho de luz Nuno Meira
Sonoplastia e desenho de som Pedro Costa
Coralidade e arranjos vocais João Henriques
Apoio ao movimento Sofia Dias e Vítor Roriz
Apoio em luta e armas David Chan Cordeiro
Assistência de encenação Margarida Bak Gordon
Tradução Daniel Hahn (inglês), Thomas Resendes (francês)
Legendagem Rita Mendes
Produção executiva Joana Costa Santos, Rita Forjaz
Produção Teatro Nacional D. Maria II (Portugal)
Coprodução Wiener Festwochen, Emilia Romagna Teatro Fondazione (Modena), ThéâtredelaCité – CDN Toulouse Occitanie & Théâtre Garonne Scène européenne Toulouse, Festival d’Automne à Paris & Théâtre des Bouffes du Nord, Teatro di Roma – Teatro Nazionale, Hrvatsko Narodno Kazalište (Zagreb), Comédie de Caen, Théâtre de Liège, Maison de la Culture d’Amiens, BIT Teatergarasjen (Bergen), Le Trident – Scène-nationale de Cherbourg-en-Cotentin, Teatre Lliure (Barcelona), Centro Cultural Vila Flor (Guimarães), O Espaço do Tempo (Montemor-o-Novo)
Apoios Almeida Garrett Wines, Cano Amarelo, Culturgest
Agradecimentos Magda Bizarro, Mariana Gomes, Rui Pina Coelho

Por defeito profissional, Luís Pimenta Lopes escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.

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