São poucos os nomes capazes de representar toda uma cultura com a sua obra nos tempos modernos. Chico Buarque e Vinicius de Moraes, amigos íntimos e companheiros de criação, são dois ícones brasileiros, presentes na história do seu País e do Mundo durante o último meio século por mérito próprio. No ano em que celebramos seis décadas da Bossa Nova (oficilamente com o lançamento do disco “Chega de Saudade”, de João Gilberto), que ambos dinamizaram e alimentaram com o seu talento e poesia inesquecível, falamos de dois livros da Companhia das Letras em que podemos testemunhar a sua mágica manipulação da palavra, com a edição integral das letras musicais de Chico Buarque (em Tantas Palavras, de 2018) e do Poetinha Vinicius de Moraes (com o Livro de Letras de 2017). Sem este corpo de obra, a MPB e a Bossa Nova não teriam certamente a mesma qualidade e alcance e são inúmeras as colaborações entre os dois que resultaram em poemas inesquecíveis.
Marcus Vinicius de Moraes (1913-1980) nasceu no Rio de Janeiro, mas depois da formação em Direito e Lingua e Literatura Inglesa, a carreira diplomática levou-o aos EUA, França e Uruguai. Com uma bagagem cultural incomum, cedo chegou à escrita, com predominância clara para a poesia, começando com uma escrita de pendor mais moral/religioso, para ir evoluindo para temas mais universais e imanentes, como a paixão, o amor e o tesão pelo melhor que a vida tem para dar. Um bon vivant e sedutor incorrigível, vivia na música e era esta, em comunhão com a poesia, que lhe davam o oxigénio que precisava para existir. Como Jobim foi o compositor da Bossa Nova e João Gilberto o seu executor exímio à guitarra, Vinicius soube ser o Poetinha que trouxe ao povo a erudição escondida do quotidiano e na alma de todo um País, renovando o orgulho na sua língua e costumes. Espremeu a vida até ao tutâno, bem regada com um whisky on the rocks, que o acompanhava em todos os espectáculos, ao lado de campanheiros de excelência, como Miúcha, Toquinho ou o sobre-humano Baden Powell.
Neste esplêndido Livro de Letras, encontramos a sua carreira dividida pelos seus principais parceiros “no crime”, um por capítulo: Tom Jobim (com quem tudo começou – para ambos – com “Orfeu da Conceição” em 1956), Baden Powell, Carlos Lyra e Toquinho. Todos os outros parceiros, como Chico Buarque ou Pixinguinha, preenchem um capítulo completo e sobra mais um para a poética em nome próprio. Segue-se um Posfácio para enquadrar e uma secção apelidada de “Arquivo”, com diversos textos sobre o mito brasileiro, com destaque para “Os bons fados de Vinicius e Baden”, que documenta a passagem de Moraes por Portugal em 1969 para um concerto com Baden Powell, escrito para o jornal Capital pelo grande Alexandre O´Neill (altura em que passou por casa de Amália para um serão inesquecível, que uma alma iluminada teve a ideia de gravar, e hoje está disponível em disco).
Chamar livros destes essenciais torna-se desnecessário, pela sua evidência.
Francisco Buarque de Hollanda, nascido a 1944 no Rio de Janeiro, compositor e letrista de nomeada, escritor multipremiado e personagem interventivo no panorama social e político do seu amado Brasil, trouxe à música brasileira, por via da sua poética, uma musicalidade nova, para além da sentimentalidade de Vinicius ou do romantismo dos compositores da velha guarda como Pixinguinha. Trouxe a escrita musical para uma realidade mais consentânea com os tempos em que era cantada, em que, não abdicando das sempre renovadas temática transversais, insuflou versatilidade e acutilância ao poemário do país irmão, com uma verve e subtileza inteligente, que lhe permitia encarar com um sorriso malandro problemas fundamentais como o sexismo e intolerância endémicas ou a brutal clivagem entre as classes altas e a miséria das favelas e ruas das grandes metrópoles do Rio e S. Paulo. As letras estão mesmo todas, desde o início da carreira, em Tantas Palavras, livro histórico publicado pela primeira vez em Portugal este ano. Ilustrado com uma cuidada “reportagem biográfica” de Humberto Werneck, na realidade uma bela e sintética biografia de mais de cem páginas, com Buarque nas suas várias dimensões, de forma dinâmica e atractiva, num retrato da sua já bem diversa carreira, é complementado com um conjunto de fotografias raras, retratando as pessoas importantes do seu trajecto pessoal e público, entre a felicidade, os momentos íntimos e os grandes eventos, num todo atractivo e cativante.
Duas publicações únicas e complementares, importantes perspectivas de duas vidas indissociáveis entre si e de tantos milhares de outras, que colaram para sempre tristezas e alegrias à música onde os nomes de Chico Buarque e Vinicius de Moraes constavam dos créditos. Para ler (e ouvir) neste e em todos os outros Natais e restantes festividades das vossas vidas.
Boas festas!
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