Daqui a alguns anos alguém fará uma boa história do universo de sonoridades que melhor expressaram o desconforto, o confronto, e até a dissidência, com o mundo em que vivemos. Será uma história ampla e necessariamente diversa, como é o mundo social que habitamos. Mas não tenho dúvidas que nessa história haverá um lugar de destaque destinado à música que se tem constituído como um lugar de contestação decisiva, e por vezes visceral, das estruturas patriarcais, misóginas, sexistas, binárias e conservadoras, que continuam a impor a sua moral dominante. Lugar de contestação, dizia eu, mas também de expressão, afirmação e empoderamento político de uma comunidade que não aceita viver prisioneira da dominação e das suas regras de comportamento normativo. Uma comunidade que faz da vivência queer uma prática quotidiana e dessa forma questiona os alicerces da conformação social. Vem a isto a propósito do lançamento do segundo álbum de Vaiapraia, 100% Carisma, uma das vozes que em Portugal melhor tem representado esse lugar estético e político que a música pode ocupar na vida coletiva. Rodrigo Vaiapraia já tinha mostrado, aquando da edição do seu primeiro álbum 1755 (Spring Toast Records, 2016), que não estava disponível para cedências. A sua música falava do desejo e da sexualidade, do amor e da toxicidade, por via de uma estética do it yourself, quase como se estivéssemos a assistir a um concerto improvisado num qualquer espaço autogerido. Vaiapraia cantava com um propósito e um compromisso.
Conheci o seu trabalho em 2018, quando atuou no Festival ¿Anormales?, que nesse ano passou por Lisboa. Tudo batia certo naquele encontro. Era um festival transfeminista, internacional e itinerante, organizado em parceria com coletivos ativistas dos países por onde passava. Em Portugal a organização do festival coube aos coletivos LGBTQ Panteras Rosa e o TransMissão, no espaço autogestionado Disgraça, em Lisboa. Era um festival de cinco dias preenchido por concertos, performances, cinema, debates e workshops, que acompanhavam uma exposição transfeminista itinerante com materiais inéditos oriundos do Chile, Equador, Colômbia, Argentina, França, Paraguai, Perú e México. Vaiapraia atuou numa das noites, e na banca do festival comprei a fanzine que acompanhava a edição de 1755. Ouvi aquele rasgo de ousadia e tentei não perder o rasto de Vaiapraia, até que há duas semanas me chegou o seu segundo álbum: 100% Carisma. Ouvi-o de início ao fim, sem pausas, e a primeira impressão com que fiquei foi que Vaiapraia trabalhou prementemente num diálogo entre o individual e o coletivo. Parecia simultaneamente um álbum pessoal, e até bastante introspetivo, e um retrato coletivo de uma geração inconformada com a normalidade.
Em 100% Carisma, podemos ouvir Vaiapraia, ao longo dos 16 temas, falar de si próprio, de forma mais melancólica ou satírica, crua ou humorística, direta ou metaforizada. Mas como já referimos, esse carater introspetivo e auto-reflexivo das suas músicas parecia estar em diálogo constante com a gente à sua volta, à nossa volta. Quando grita que não consegue dormir, estamos todos a gritar com ele, porque também não conseguimos. Os gritos são seus, tanto quanto são nossos. É uma música de autor, tanto como uma música de movimento. Talvez por isso seja tão frequente a articulação da sua voz com os coros, que dão uma espessura coletiva muito forte em temas como “Quem Queimou o Evangelho Apócrifo das Bichas”, “Real”, “Tenho fome” “Disca-me efetos”, “Frigorífico vazio”ou “Não consigo dormir” ou a divertida “Pose de Neuza”.
A voz de Vaiapraia percorre o álbum, sem perder o seu rasgo punk e um certo direito de fuga, mas também não oculta uma doçura irónica e poética. A sua voz é melancólica e comovente em “É que à noite”, visceral e crua em “Casa do pecado”, raivosa e enfurecida em “Tenho fome”, mas sempre profundamente performática: quando se expressa, age e concretiza.
Os temas do álbum estão todos muito bem desenhados, numa inspiração pós-punk, pós-hardcore e riot grrrl (se estes termos ainda nos servem), sem perder o cuidado com os arranjos e com uma bateria (Ana Farinha) sempre no sítio certo. Além disso, comungam da belíssima arte de “desfigurar” as canções: parti-las, dobrá-las, sem que percam identidade e fluidez. Temas como “Rabo”,“Fogo fera” e sobretudo “Não consigo dormir” são exemplos perfeitos desse engenho de conjugar diversidade e coerência.
100% Carisma está repleto de honestidade, crueza e humor. Não deixa de fora as fragilidades e a sua importância e talvez por isso a sua música seja tão provocadora e galvanizante. Volto onde comecei. 100% Carisma é um retrato de autor e de movimento que, sem censuras, nos lembra que a música é tão mais tocante quanto melhor a sua qualidade. É um álbum para abrir campos de possibilidades, ou mesmo para os escancarar. Nestes tempos estranhos em que vivemos, é bom sentir que o silêncio não nos dominou, que ainda há música com algo a dizer ao mundo.
Entrevista com o Rodrigo Vaiapraia
Foto © Diogo Santo
Por defeito profissional, o João Mineiro escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.
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